"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 3 de janeiro de 2021

Ressentimento


O ressentido volta-se para o seu passado e, quanto mais mergulha nele, mais
encontra objeções contra si e contra o devir do mundo. Se fosse possível, ele
desejaria ter feito outras escolhas, talvez não ter se calado, talvez ter
enfrentado alguns riscos e incertezas, talvez não ter feito isso e aquilo.
Desejaria, até, ter sido outra pessoa – mas como imagina que o seu passado é
impossível de ser alterado, resta-lhe olhar para o seu futuro, para o futuro do
mundo, e a resposta para a pergunta “Para aonde vai a existência?” parece-lhe
teimosamente escapar. “Haverá um futuro melhor do que o triste e injusto
presente?”, insiste ele. A dor por não viver de acordo com o seu desejo é, de
fato, a sua maior objeção contra o mundo. Seu cansaço crescente, a obrigação
de cumprir os desejos dos outros, a vida que não para de passar, a sucessão dos
acontecimentos que são desfavoráveis ao seu desejo, as ruminações das
impressões que servem para alimentar o seu ódio à vida, o ódio às supostas
causas dos seus males, tudo isso lhe faz imaginar que o mundo, sua realidade
inalterável, nada mais é do que repressão. Cansado também de si mesmo, da
inutilidade do seu ódio, o ressentido imagina que sua luta pela vida, isto é,
sua busca pela felicidade permanente, é algo que parece ser impossível de ser
alcançado. Afinal, ele se dá conta de que as forças da vida excedem o seu
desejo – como isso o atormenta, percebe que a vitória sobre o acaso é apenas
uma quimera, uma ficção, um engodo. Resta resignar-se com o sentido
imposto do exterior, tornando-se cúmplice da ordem moral que se alimenta do
seu sangue, que, através dos entorpecentes, faz livrá-lo momentaneamente do
terrível sentimento do nada, mas que também o ameaça, castiga, produz medo.
Portanto, as relações de poder não se explicam pela famigerada noção de luta
de classes. Elas se constituem por indivíduos que não agem, que padecem, que
sofrem com o que lhes acontece, e que por isso são movidos por vingança, por
vontade de corrigir os homens, de corrigir o mundo. Em razão do
ressentimento, é estabelecida uma dependência mútua entre o senhor e os seus
servos, de modo que os servos dizem para si mesmos: “Não conseguiríamos
viver sem o rei!”; e o rei, da mesma forma, diz para si: “Não conseguiria viver
sem os meus súditos!”. Impotente, o ressentido quer uma pequena felicidade,
uma pequena ocasião para ser invejado, algum elogio, algum reconhecimento,
algum sucesso, alguma fama – e isso tudo ele recebe, sem dúvida, desde que
seja submisso ao poder. Mas o homem de poder, por ser ressentido, também é
servo daqueles que o servem: como também quer ser invejado, bajulado,
reconhecido, é inevitável que dependa de quem se submete para satisfazê-lo.
Então, todos servem, os impotentes e ressentidos lutam por sua própria
servidão, antes a servidão, antes uma migalha de prazer, do que viver de outro
modo, onde haja algum risco, alguma imprevisibilidade, alguma criação. Eles
querem, ou melhor, necessitam do poder econômico, da acumulação de bens
materiais, de bens culturais (de uma suposta “sabedoria”), para que a sua
miséria existencial seja disfarçada. Querem dinheiro, muito dinheiro, para
serem admirados, invejados, para se sentirem distintos, superiores, senhores de
alguma coisa. Portanto, o capitalismo não é nada misterioso, pois ele é apenas
sintoma da necessidade dos ressentidos esconderem, até de si mesmos, o seu
sofrimento. É possível perceber que não há, de fato, oposição entre “ricos” e
“pobres” : enquanto os indivíduos são ressentidos, permanecem de mãos dadas
para a reprodução de tudo aquilo que envenena a vida humana... Ah, e como
eles olham com ódio quando se sentem “incultos” e “medíocres” diante de
alguém forte, exuberante, alegre e livre do ressentimento! Mas é inevitável que
a mediocridade do ressentido – que faz até ele se sentir incomodado – leva-o a
tentar algum destaque numa atividade que não seja a do “trabalho-pelolucro”:
essa é a razão que o leva a tentar desesperadamente algum sucesso (leiase:
alguma admiração, alguma inveja...) na música, na literatura, nas artes
plásticas. Mas como ele luta contra o tempo, a superficialidade da sua
“atividade artística” apenas denuncia a sua esterilidade, fruto de sua péssima
alimentação das sensações e do tempo. E a política dos ressentidos modernos é
para rir: sua democracia representativa é pura distração, circo, passatempo,
ferramenta de poder – o próprio ressentido percebe cada vez mais que ela não
pode ser levada a sério. A democracia serve para desviar o olhar de si mesmo e,
dessa forma, reforçar os afetos de rancor que multiplicam as exigências de que
alguém (o que habitualmente se chama de “político”) deve resolver os
problemas do mundo. E quais são os problemas do “mundo”? Certamente são
os que ameaçam a sua tranquilidade, a sua pequena felicidade, em suma, o seu
mundo privatizado... “Um mundo sem dor, por favor!”. Mas tudo se decide
aqui: a dor, para o ressentido, é sempre o começo do seu fim, enquanto para
quem é sadio, é apenas o começo da sua liberdade de agir. Mas isso é dizer que,
enquanto o ressentido nega a vida, odeia a vida, o outro, o criador, afirma a
vida, ama a vida. Mas isso é também dizer que, enquanto o ressentido olha
para o seu passado com um olhar de reprovação, o homem afirmador não
apenas olha para o seu passado, mas também se diverte, brinca, se alegra com
ele, faz alguma coisa realmente grande com ele. Mas isso tudo é, enfim, dizer
que, enquanto o ressentido entrega o seu destino nas mãos de um parasita, que
promete livrá-lo do “mal”, o homem sadio recusa essa submissão e assume a
responsabilidade pelo seu próprio destino – ele não foge, não precisa fugir da
vida, porque sabe que não há nada fora da vida.

Amauri Ferreira

https://www.amauriferreira.com/ 

Download da obra completa em PDF aqui.

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