Nós chegamos a um ponto tal de
separação das nossas potências ou das nossas forças de existir, agindo,
sentindo e criando realidade, nós nos separamos a um ponto tal que nós
sequer sonhamos que temos essas forças em nós. E à medida em que
sentimos que há uma ausência, uma insuficiência de ser, que sentimos a
falta como constitutiva da nossa essência, nós nos tornamos conformados.
E nós pensamos “Bom, deve haver um jeito”. Deve haver um jeito de
burlar essa tristeza, essa miséria na existência. Deve ter um jeito
esperto, o que Estamira chamava de “esperto ao contrário”. Deve ter um
jeito de compensar. E nós buscamos a qualquer custo a compensação, e por
isso aqui se torna uma coisa complicada achar que de fato só existe
esse modo de pensar, sentir e agir, esse modo que busca sempre, a partir
de uma finalidade, aquilo que restitui a plenitude da existência — o
que já se sabe de antemão que não vai se restituir. A existência vai ser
sempre faltosa. Mas pelo menos vai ser melhorar. É o modo moralista de
existir, achar que a existência, que é imperfeita, pode ser melhorada, e
jamais vai deixar de ser imperfeita.
Ora, nós estamos aqui na
contramão disso. É muito ao contrário. A existência é perfeita,
inclusive o mal, as dores e a doença. São interventores de modo a fazer
da vida uma perfeição. Não há imperfeição na existência. Não tem dor na
existência que seja capaz de tornar a existência imperfeita para quem de
fato sabe apreender a plenitude do real. Existe um modo de ver, se
sentir, de pensar que é pleno, que é afirmativo. E nós precisamos
retomar isso.
O que nos impede de ver? Aquilo que nos tornamos. O
acontecido em nós é a nossa primeira barreira. E aí, cegos que nos
tornamos a partir de uma covardia inicial, porque atrás da cegueira tem
uma covardia, nos conformamos e buscamos piedosamente aquilo que vai nos
salvar. O que vai nos salvar é uma instância de empoderamento. Ora, a
instância de empoderamento vai, por mais que queiramos nos enganar, nos
embriagar, nos entorpecer, ela vai nos levar para um buraco ainda maior.
Nada vai curar essa ferida da insuficiência de ser, com diria Lacan, se
de fato não fizermos a lição de casa. Se não dermos um passo atrás. Se
não começarmos a descontruir essa construção corrompida das formas
humanas dominantes de existir. É fundamental fazermos essa
desconstrução. É fundamental largarmos o osso. É fundamental deixarmos
de aderir a um sistema que nos seduz.
Vai aumentar a tristeza?
Vai aumentar a dor? Vai aumentar a insegurança? Talvez, em um certo
sentido. Mas também vão aumentar ou multiplicar as oportunidades de
retomarmos a vida nas próprias mãos, e de não dependermos de nenhuma
instância exterior de empoderamento. E de perceber que, para haver essa
instância de empoderamento, é preciso que a minha vida siga impotente e
separada do que pode. Porque não tem poder nesse mundo que vá extinguir a
impotência. É muito ao contrário: onde há poder, há multiplicação da
impotência e da miséria. Na verdade, quando você quer atacar o poder,
você não ataca nada se você não ataca as condições de enfraquecimento da
vida e de produção e reprodução da miséria afetiva.
Não há
capitalismo que não se alimenta da multiplicação da miséria afetiva. A
miséria afetiva é a matéria subjetiva por excelência que faz com que
todos nós nos tornemos sujeito universal do capital. Há um único
sujeito, como diria Marx. É o sujeito universal do capital, que coincide
com o nosso modo miserável de existir. E é esse modo miserável de
existir que vai buscar a compensação na reprodução do capital.
Aqui
é um foco direto nas nossas cumplicidades. Focar nas cumplicidades. O
que haveria como antídoto para isso? Se passa tudo em dois níveis, nos
níveis das duas capturas. Primeiro, fazer um uso interessante do que nos
acontece — de bom ou de mau. Um uso interessante, não é um uso
verdadeiro, porque a verdade é uma ficção. É um uso interessante. E não
um uso, primeiro, vitimizado, piedoso e justiceiro do mal que aconteceu,
de um lado; ou então um uso complacente e empoderador do bem que
aconteceu.
Primeiro é desinvestir esse mau uso tanto do bem
quanto do mal que me acontece. E extrair, tanto do bem quanto do mal,
não compensações, mas intensidades que retomam as forças que nos
constituem e nos potencializam. Mas, para isso, é necessário investir em
uma suspensão. É necessário investir na espreita. É necessário
indeterminar os movimentos que nos determinam. Indiscernir os movimentos
que nos distinguem ou identificam. Tornar ambíguos os movimentos que
nos binarizam ou que investem nos sistemas duais, binários e biunívocos.
Esses sistemas dicotômicos. É necessário que nós invistamos nessa força
de suspensão que indetermina os movimentos, os tempos e os afetos e
disponibiliza o nosso tempo próprio, os nossos movimentos e o nosso
campo afetivo. E, a partir daí, gerando intervalo ou distância entre
aquilo que nos acontece e a nossa potência de acontecer, gerando
entretempos, nós intensificamos o nosso desejo. Aumentamos, dilatamos,
ampliamos a duração. Investimos na nossa fábrica de diferenciar. Nós nos
tornamos fonte de diferenciação e, por isso mesmo, fontes de produção
de valor.
A questão do que fazer para reconquistar a superfície,
que é o primeiro aspecto criativo ou a primeira tarefa positiva, para
usar um termo de Deleuze e Guattari, da esquizoanálise. A primeira
tarefa positiva da esquizoanálise é reencontrar e ao mesmo tempo criar
uma superfície lisa, uma zona de passagem que é aquilo que nos dispensa
das mediações e dos sistemas de representação. E, a partir daí,
empreender a segunda tarefa positiva, que é entrar no processo de
diferenciação ou de criação de valor — que é, ao mesmo tempo, a criação
das condições de existência ou de tudo que de nós deriva, e
fundamentalmente criação de nós mesmos. Onde nos tornamos diferentes de
nós mesmos, superando a nós mesmos a cada movimento ou ato de
existência, ampliando a nossa zona de multiplicidade, as nossas nuances,
e reconquistando o direito ao futuro. Ou seja, dispondo do futuro. O
futuro se torna aberto.
O futuro se abre e o passado deixa de ser
um demônio que nos arrasta para baixo, um espírito de gravidade que nos
lança em um buraco e se torna o quê? Uma potência que sobe à superfície
ou uma força turbilhonar que nos torna leves, fluidos e nos faz dançar.
Que afirma uma linha de fuga onde o movimento do desejo e o caminho que
ele percorre se tornem uma coisa só. O próprio desejo traça o caminho
que ele percorre, ao mesmo tempo em que ele percorre. Ou seja, uma linha
de fuga que cria um circuito ativo, afirmativo e autossustentável do
devir. Isso é totalmente factível.
A esquizoanálise não pode
deixar por menos. A esquizoanálise não é um modo de ver a vida um pouco
melhor. A esquizoanálise implica em uma visão de perfeição da
existência, absolutamente afirmativa da existência. Não faz concessão,
não precisa fazer o sacrifício da concessão. Há, sim, uma ótica. Há,
sim, um horizonte. Há, sim, uma maneira que é plenamente afirmativa
daquilo que se diferencia em nós e que cria valor.
Luiz Fuganti
[Trecho transcrito da segunda aula do Curso de Introdução à Esquizoanálise, realizada em 26/06/2021]
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