"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 24 de julho de 2011

Estereótipos no casamento

Adriana Tanese Nogueira






Havia uma vez homens que trabalhavam fora e mulheres que cuidavam de casa e filhos. Nesse tempo, os homens eram secos, sérios e distantes. As mulheres se ocupavam do bem estar emocional deles e da inteira família. Ele se abnegava no trabalho externo, sacrificando-se para sustentar a família. Ela se abnegava no trabalho interno, sacrificando-se para manter a família alimentada, limpa e unida.





Homens dessa era não são bons em expressar emoções, seu sentimentos não fluem com facilidade. A eles refere-se a família para encontrar a última palavra, neles repousa a autoridade final. A dureza do ganha-pão cotidiano, dos conflitos e desafios que se

apresentam diariamente, as árduas vitórias e as muitas derrotas tornam esses homens duros e cansados. A casa é o lugar onde eles esperam encontrar conforto, descanso, renovação das energias. É natural, portanto, que não tenham paciência nem vontade de se desdobrar para entender uma criança berrante, a crise adolescial da filha e os problemas de autoestima do filho. A comunicação familiar é o ponto fraco desse homem.







Quem faz o meio de campo é sua esposa. Ela é a "grande mãe": acode a todos, nutre a todos, compreende a todos. Providencia as diversas necessidades para os diferentes membros da família. Por estar mais com os filhos os entende melhor, a ela vão para se confidenciar ou pedir mediação na relação com o chefe da família, o pouco compreensível pai. É ela quem ensina aos filhos a respeitar esse homem distante e nem sempre agradável de se ter por perto. Ela induz a obediência a ele, a mesma que ela lhe dá.





Precisas razões econômicas fizeram emergir esse modelo de relação. A divisão de papeis corresponde à necessária partilha de responsabilidades e trabalho. Se considerarmos que antigamente, as famílias tinham um número maior de filhos e que avós e outros parentes podiam viver juntos numa comunidade familiar, então, é evidente que, assim como em qualquer empresa hoje, uma boa organização do trabalho é indispensável para a sobrevivência e a prosperidade de todos.





Cada função exige diferentes aptidões. Estar com crianças pequenas demanda habilidades distintas que um executivo ou um operário não tem a oportunidade de desenvolver. A necessidade criou a função. Mulheres aprimoraram determinadas características humanas, como afetividade, relacionamento, cuidados práticos e materiais, sentido da casa, preocupação concreta com o outro (não ideal e abstrata), atenção para o bem estar físico, alimentação, limpeza, paciência, generosidade, harmonia material e beleza (na casa, no corpo, nas coisas físicas). Homens apuraram outras qualidades humanas, tais como força física, intelectualidade, estratégia, coragem, ousadia, ideias, frieza emocional, racionalidade, dureza de postura, atenção para o quadro mais amplo, visão de conjunto. Se elas cuidam do particular: corpo físico individual e familiar, casa material, corpo delas e deles, roupas, comida, dentes lavados, banho tomado, lençóis limpos, etc.; eles estão de olho no universal: sociedade, empresa, idéias, política, projetos. Mesmo um trabalhador braçal deve ter uma visão maior de seu quintal para inserir-se numa empresa ou procurar trabalho numa sociedade complexa e ampla.





Com o tempo, as necessidades econômicas foram revestidas por mantos sociais e culturais. Criaram-se interpretações e justificativas, segundo as quais "homens são assim" e "mulheres são assado". E vieram as religiões, e vieram os interesses políticos. Quem tem o poder escreve a história e determina o que é real. Os homens por terem historicamente detido o poder em lares, igrejas e parlamentos produziram sua versão da história.





A introjeção dessas funções que ocorreu nos séculos por pura repetição de papeis gerou a psicologia desses papeis que, por sua vez, parece dar suporte aos próprios como sendo "natureza" e "essência".





Nada disso é verdade. Não existem essências, fora aquela única, humana. Nessa base humana coexistem funções e aptidões diferentes que por causa de uma história milenar se fixaram em nossa psique. As duas dimensões são o masculino e o feminino. Ambas são indispensáveis para o bom funcionamento do todo, seja ele a família e a sociedade, seja o indivíduo.





Voltando ao tempo do faz de conta do casamento baseado em estereótipos, naquela era papai e mamãe não eram indivíduos, mas papeis. Como atores, dedicavam-se completamente a assumir sua parte, mergulhando com convicção no mundo que estava prescrito para cada um. Porém, demonstrando que esses papeis não são essências inatas e fixas da psique individual, mudanças econômicas e consequentemente sociais produziram o descontentamento feminino que levou as mulheres a não ter o que fazer mais em casa, fora estupidificar-se. Uma vez que a família diminuiu de tamanho, uma vez que se tem máquina de lavar e todo um conjunto de eletrodomésticos, uma vez que existem escolas onde as crianças passam a maior parte de seu tempo e uma vez que outros familiares vivem por conta deles: o que restou para a mulher? Fazer-se bonita no espelho da cômoda esperando o marido voltar para casa à noite?





Foi assim que as mulheres começaram a sentir aquela saudável vontade de ser novamente útil e de ter alguma satisfação na vida. Só podiam encontrar isso fora de casa, já que o lar havia se encolhido a um dormitório para quatro pessoas. No mundo de fora, elas desabrocharam e "se complicaram". Há mais de cinquenta anos vivemos uma fase de transição nos relacionamentos entre homens e mulheres e, por consequência, naqueles familiares. Essa fase se iniciou com a saída das mulheres de casa e ainda não terminou. Um novo equilíbrio não acontece de uma hora para outra, inclusive porque ele requer a participação do outro sujeito em questão, o homem.





O maridão de antigamente trabalhava o dia inteiro fora, voltava para casa e encontrava um lar limpo e organizado, cheirinho gostoso de comida chegando da cozinha, crianças alegres, já de banho tomado e prontas para dar-lhe um beijinho e irem para cama, uma esposa sorridente lhe dando as boas vindas, e lá ele se sentava em sua poltrona favorita, dava um profundo respiro e sabia que agora sim, podia, finalmente, repor as energias do dia de trabalho. Se é verdade que esse quadro nem sempre se realizava, ele era porém a referência para todos, portanto, também, a causa de brigas quando não cumprido. Quando a fadinha que criava esse mundo de sonhos chegava ela própria em casa à noite, cansada desejando crianças perfumadas, tranquilas e lavadas prontas para irem para cama, um marido sorridente e atencioso, um lar acolhedor a crise das relações de gênero conflagrou.





Devemos concordar que ser inteiros é mais difícil do que ser uma simples metade. Ser um expert em trabalhar num escritório ou no espaço, num centro de pesquisa ou num consultório e ser também um expert em entender a linguagem de uma criança, atender reuniões de escola, conferir boletins, comprar roupas, fazer comida, limpar a casa e lembrar-se das comemorações familiares é enormemente difícil. Qual homem está a fim disso? E vice-versa, passar horas escolhendo roupinhas de bebê, fazer bolos, trocar idéias com outras mães, andar por supermercados e cuidar de ter uma casa bonita é bem menos complicado do que acrescentar a isso prazo de trabalho, projetos para o futuro, preocupações sobre como pagar as contas, estresse com chefes e colegas, e muito mais. Qual mulher quer isso?





Por este motivo muitos casais mantém-se atados de unhas e dentes a esse modelo do passado na busca de uma vida em comum fácil, que flua sem transtornos e na qual cada um possa encontrar sua parte de satisfação.



Infelizmente, porém (ou felizmente), não dá para enganar a evolução humana. Ocorre que por mais esforço que cada um coloque na fidelidade a esse modelo, ele está radicalmente rachado e bichado. Somente um casal parado no tempo e vivendo isolado do mundo dinâmico de hoje poderia talvez conseguir viver feliz nesse esquema rígido de papeis. Devem viver isolados e ter mentalidade simples e antiquada porque se estiverem em contato com o mundo de hoje não terão como não confrontar-se com estímulos, idéias e oportunidades.





Está rachado porque o tempo desse modelo acabou. Está bichado porque quem o mantém paga um preço alto. Inúmeras mulheres com problemas psicossomáticos, sobretudo em cabeça, seios e úteros. Cabeça, porque não é usada o suficiente (há coisa demais reprimida que não "soube" para a cabeça, ou seja para a consciência); seios e úteros porque são usados demais, no sentido que lá essas mulheres depositam seu sentido existencial. Muitos são os casais com vida sexual insatisfatória, há traições, hipocrisia e brigas.





Não é o anel de brilhante ou a comidinha gostosa que segura ou dá sentido a uma relação.

A estrutura de um relacionamento está no companheirismo e na cumplicidade entre duas pessoas, ou seja: no entender-se, trocar, sentir-se, tocar-se na alma. Reconhecer-se. Poder conversar de verdade, sem um ser o papai explicando e maneirando para ela entender e ela a mamãe moderando e tomando cuidado para ele não ficar bravo. Mas o que o executivo tem a conversar que o nutra, que lhe dê satisfação verdadeira, com uma mulher cujo mundo é casa, cozinha e crianças? E o que uma mulher de sentimento apurado tem a trocar com um homem travado emocionalmente?





Mundos opostos, distantes, incompreensíveis impossibilitam relações de amor. Amamos quem compreendemos, com o coração e com a mente. Amamos quando encontramos o outro dentro de nós.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...