Adriana Tanese Nogueira
Havia uma vez homens que trabalhavam fora e mulheres que cuidavam de casa e filhos. Nesse tempo, os homens eram secos, sérios e distantes. As mulheres se ocupavam do bem estar emocional deles e da inteira família. Ele se abnegava no trabalho externo, sacrificando-se para sustentar a família. Ela se abnegava no trabalho interno, sacrificando-se para manter a família alimentada, limpa e unida.
Homens dessa era não são bons em expressar emoções, seu sentimentos não fluem com facilidade. A eles refere-se a família para encontrar a última palavra, neles repousa a autoridade final. A dureza do ganha-pão cotidiano, dos conflitos e desafios que se
apresentam diariamente, as árduas vitórias e as muitas derrotas tornam esses homens duros e cansados. A casa é o lugar onde eles esperam encontrar conforto, descanso, renovação das energias. É natural, portanto, que não tenham paciência nem vontade de se desdobrar para entender uma criança berrante, a crise adolescial da filha e os problemas de autoestima do filho. A comunicação familiar é o ponto fraco desse homem.
Quem faz o meio de campo é sua esposa. Ela é a "grande mãe": acode a todos, nutre a todos, compreende a todos. Providencia as diversas necessidades para os diferentes membros da família. Por estar mais com os filhos os entende melhor, a ela vão para se confidenciar ou pedir mediação na relação com o chefe da família, o pouco compreensível pai. É ela quem ensina aos filhos a respeitar esse homem distante e nem sempre agradável de se ter por perto. Ela induz a obediência a ele, a mesma que ela lhe dá.
Precisas razões econômicas fizeram emergir esse modelo de relação. A divisão de papeis corresponde à necessária partilha de responsabilidades e trabalho. Se considerarmos que antigamente, as famílias tinham um número maior de filhos e que avós e outros parentes podiam viver juntos numa comunidade familiar, então, é evidente que, assim como em qualquer empresa hoje, uma boa organização do trabalho é indispensável para a sobrevivência e a prosperidade de todos.
Cada função exige diferentes aptidões. Estar com crianças pequenas demanda habilidades distintas que um executivo ou um operário não tem a oportunidade de desenvolver. A necessidade criou a função. Mulheres aprimoraram determinadas características humanas, como afetividade, relacionamento, cuidados práticos e materiais, sentido da casa, preocupação concreta com o outro (não ideal e abstrata), atenção para o bem estar físico, alimentação, limpeza, paciência, generosidade, harmonia material e beleza (na casa, no corpo, nas coisas físicas). Homens apuraram outras qualidades humanas, tais como força física, intelectualidade, estratégia, coragem, ousadia, ideias, frieza emocional, racionalidade, dureza de postura, atenção para o quadro mais amplo, visão de conjunto. Se elas cuidam do particular: corpo físico individual e familiar, casa material, corpo delas e deles, roupas, comida, dentes lavados, banho tomado, lençóis limpos, etc.; eles estão de olho no universal: sociedade, empresa, idéias, política, projetos. Mesmo um trabalhador braçal deve ter uma visão maior de seu quintal para inserir-se numa empresa ou procurar trabalho numa sociedade complexa e ampla.
Com o tempo, as necessidades econômicas foram revestidas por mantos sociais e culturais. Criaram-se interpretações e justificativas, segundo as quais "homens são assim" e "mulheres são assado". E vieram as religiões, e vieram os interesses políticos. Quem tem o poder escreve a história e determina o que é real. Os homens por terem historicamente detido o poder em lares, igrejas e parlamentos produziram sua versão da história.
A introjeção dessas funções que ocorreu nos séculos por pura repetição de papeis gerou a psicologia desses papeis que, por sua vez, parece dar suporte aos próprios como sendo "natureza" e "essência".
Nada disso é verdade. Não existem essências, fora aquela única, humana. Nessa base humana coexistem funções e aptidões diferentes que por causa de uma história milenar se fixaram em nossa psique. As duas dimensões são o masculino e o feminino. Ambas são indispensáveis para o bom funcionamento do todo, seja ele a família e a sociedade, seja o indivíduo.
Voltando ao tempo do faz de conta do casamento baseado em estereótipos, naquela era papai e mamãe não eram indivíduos, mas papeis. Como atores, dedicavam-se completamente a assumir sua parte, mergulhando com convicção no mundo que estava prescrito para cada um. Porém, demonstrando que esses papeis não são essências inatas e fixas da psique individual, mudanças econômicas e consequentemente sociais produziram o descontentamento feminino que levou as mulheres a não ter o que fazer mais em casa, fora estupidificar-se. Uma vez que a família diminuiu de tamanho, uma vez que se tem máquina de lavar e todo um conjunto de eletrodomésticos, uma vez que existem escolas onde as crianças passam a maior parte de seu tempo e uma vez que outros familiares vivem por conta deles: o que restou para a mulher? Fazer-se bonita no espelho da cômoda esperando o marido voltar para casa à noite?
Foi assim que as mulheres começaram a sentir aquela saudável vontade de ser novamente útil e de ter alguma satisfação na vida. Só podiam encontrar isso fora de casa, já que o lar havia se encolhido a um dormitório para quatro pessoas. No mundo de fora, elas desabrocharam e "se complicaram". Há mais de cinquenta anos vivemos uma fase de transição nos relacionamentos entre homens e mulheres e, por consequência, naqueles familiares. Essa fase se iniciou com a saída das mulheres de casa e ainda não terminou. Um novo equilíbrio não acontece de uma hora para outra, inclusive porque ele requer a participação do outro sujeito em questão, o homem.
O maridão de antigamente trabalhava o dia inteiro fora, voltava para casa e encontrava um lar limpo e organizado, cheirinho gostoso de comida chegando da cozinha, crianças alegres, já de banho tomado e prontas para dar-lhe um beijinho e irem para cama, uma esposa sorridente lhe dando as boas vindas, e lá ele se sentava em sua poltrona favorita, dava um profundo respiro e sabia que agora sim, podia, finalmente, repor as energias do dia de trabalho. Se é verdade que esse quadro nem sempre se realizava, ele era porém a referência para todos, portanto, também, a causa de brigas quando não cumprido. Quando a fadinha que criava esse mundo de sonhos chegava ela própria em casa à noite, cansada desejando crianças perfumadas, tranquilas e lavadas prontas para irem para cama, um marido sorridente e atencioso, um lar acolhedor a crise das relações de gênero conflagrou.
Devemos concordar que ser inteiros é mais difícil do que ser uma simples metade. Ser um expert em trabalhar num escritório ou no espaço, num centro de pesquisa ou num consultório e ser também um expert em entender a linguagem de uma criança, atender reuniões de escola, conferir boletins, comprar roupas, fazer comida, limpar a casa e lembrar-se das comemorações familiares é enormemente difícil. Qual homem está a fim disso? E vice-versa, passar horas escolhendo roupinhas de bebê, fazer bolos, trocar idéias com outras mães, andar por supermercados e cuidar de ter uma casa bonita é bem menos complicado do que acrescentar a isso prazo de trabalho, projetos para o futuro, preocupações sobre como pagar as contas, estresse com chefes e colegas, e muito mais. Qual mulher quer isso?
Por este motivo muitos casais mantém-se atados de unhas e dentes a esse modelo do passado na busca de uma vida em comum fácil, que flua sem transtornos e na qual cada um possa encontrar sua parte de satisfação.
Infelizmente, porém (ou felizmente), não dá para enganar a evolução humana. Ocorre que por mais esforço que cada um coloque na fidelidade a esse modelo, ele está radicalmente rachado e bichado. Somente um casal parado no tempo e vivendo isolado do mundo dinâmico de hoje poderia talvez conseguir viver feliz nesse esquema rígido de papeis. Devem viver isolados e ter mentalidade simples e antiquada porque se estiverem em contato com o mundo de hoje não terão como não confrontar-se com estímulos, idéias e oportunidades.
Está rachado porque o tempo desse modelo acabou. Está bichado porque quem o mantém paga um preço alto. Inúmeras mulheres com problemas psicossomáticos, sobretudo em cabeça, seios e úteros. Cabeça, porque não é usada o suficiente (há coisa demais reprimida que não "soube" para a cabeça, ou seja para a consciência); seios e úteros porque são usados demais, no sentido que lá essas mulheres depositam seu sentido existencial. Muitos são os casais com vida sexual insatisfatória, há traições, hipocrisia e brigas.
Não é o anel de brilhante ou a comidinha gostosa que segura ou dá sentido a uma relação.
A estrutura de um relacionamento está no companheirismo e na cumplicidade entre duas pessoas, ou seja: no entender-se, trocar, sentir-se, tocar-se na alma. Reconhecer-se. Poder conversar de verdade, sem um ser o papai explicando e maneirando para ela entender e ela a mamãe moderando e tomando cuidado para ele não ficar bravo. Mas o que o executivo tem a conversar que o nutra, que lhe dê satisfação verdadeira, com uma mulher cujo mundo é casa, cozinha e crianças? E o que uma mulher de sentimento apurado tem a trocar com um homem travado emocionalmente?
Mundos opostos, distantes, incompreensíveis impossibilitam relações de amor. Amamos quem compreendemos, com o coração e com a mente. Amamos quando encontramos o outro dentro de nós.
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