"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A sonegação da graça







Leia aqui os capítulos censurados de "Culpa e Graça"








É conhecida a observação do Abade Mugnier que, quando lhe perguntaram se acreditava no inferno, respondeu: “Certamente acredito nele; mas também acredito que não há ninguém lá.” Isso me parece mais do que um lampejo espirituoso. É um ponto de vista que é inerente a toda a perspectiva da Bíblia, de que a severidade e as ameaças de Deus – ou o que o homem em seu remorso atribuem a Deus – são destinadas a nada menos que a sua salvação e a conservá-lo fora do abismo.
Um dos textos censurados do livro de Paul Tournier. Três capítulos e este parágrafo foram suprimidos na edição brasileira.

Ele está lá, o número 22 na lista de Ricardo Quadros Gouvêa dos quarenta livros que fizeram a cabeça dos evangélicos brasileiros nos últimos quarenta anos. Uma edição despretensiosa, a capinha azul ciano coroada por um austero retângulo preto, uma tradução por vezes truncada e uma redação nem sempre fluente. Nada disso impediu que Culpa e Graça, do médico suíço Paul Tournier, se mostrasse no meio evangélico brasileiro um livro absolutamente seminal: uma semente, mas uma semente cuja potência e singeleza bastaram para produzir nos leitores o seu próprio solo fértil – o tipo de obra cuja onda de impacto se estende muito além dos limites das páginas e da data de publicação.
Rolava ainda a década de 1980 quando encontrei o livro no apartamento da minha tia Lauriza e rendi-me imediatamente à sua lucidez. Lembro claramente meu assombro ao deparar-me, expostos ao ar livre, sem meias medidas mas com toda a compaixão, com os mecanismos que eu havia lutado desde sempre para permanecerem ocultos no meu interior.
“Minha irmã é tão categórica em suas opiniões”, disse-me uma senhora, “que me sinto sempre um pouco culpada se não tenho a sua opinião”. E uma outra: “Eu chego a evitar ir visitar a minha irmã, porque no momento em que quero ir embora, ela diz: ‘Como? Já vai?’, com um tom de reprovação que até me faz sentir culpada”.
Que direito tinha esse sujeito de falar publicamente de mim (e das minhas irmãs)? E logo em seguida:
Porque a verdadeira culpa é, essencialmente, você não ousar ser você mesmo. É o medo do julgamento dos outros que nos impede de sermos nós mesmos, de nos mostrarmos tal como somos, de manifestarmos nossos gostos, desejos e convicções, de nos desenvolvermos, de nos expandirmos segundo a nossa própria natureza, livremente. É o medo do julgamento dos outros que nos esteriliza, que nos impede de produzir todos os frutos que somos chamados a produzir. “Fiquei com medo” diz, na parábola dos talentos, o servo que escondeu o seu talento na terra, em lugar de fazê-lo valorizar.
Meu Deus, meu Deus: a verdadeira culpa é você não ousar ser você mesmo. E ainda estávamos no segundo capítulo.
Culpa e graça foi lançado no Brasil em 1985, pela Aliança Bíblica Universitária (ABU). Essa versão resiste ao tempo e circula teimosamente em sua forma original (o livro da minha tia transita há décadas entre a minha casa e a dela; às vezes, como agora, não temos certeza de com quem ele está), em cópias reprográficas e em versões pirateadas.
O que pouca gente sabe ou percebeu é que, por alguma razão que os editores não declaram no livro (e, que eu saiba, em nenhum outro lugar) os três últimos capítulos da versão original foram suprimidos da versão brasileira. A explicação mais simples e mais provável para essa omissão é que os textos em questão foram considerados fortes ou heterodoxos demais para o público a que se dirigia. Os dois últimos capítulos da versão brasileira, numerados 20 e 21, são intitulados Tudo deve ser pago e Foi Deus quem pagou – e já são bastante subversivos em si mesmos, mas aparentemente os capítulos seguintes iam ainda mais longe.
Há quase dois anos venho sonhando em rastrear, traduzir e divulgar esses capítulos proibidos, como parte do meu ministério de ver o circo pegar fogo. Poupou-me desse trabalho e dessa glória o Zenon Lotufo Junior, que mandou-me há alguns dias esses textos, na tradução de seu amigo Antonio Augusto Martins Ribeiro. Seu conteúdo subversivo você pode agora avaliar por si mesmo pela primeira vez.
Há por exemplo, o capítulo 24, A ordem de Melquisedeque, com sua ênfase num sacerdócio universal que transcende a esfera da igreja e a engloba. Há o capítulo 23, O caminho da confissão, que sugere que a graça é tão ampla e eficaz que qualquer um pode imprimir, e sobre qualquer um, a divina absolvição. E há em especial o capítulo 22, Amor incondicional, que demonstra que Tournier pensava sobre a graça, em 1962, essencialmente o mesmo que J. Harold Ellens pensa nos nossos dias: é a natureza incondicional do amor divino que possibilita a cura humana – Deus não tem ninguém na sua lista:
Portanto, insisto na palavra “incondicionalmente”, porque ela me parece muito importante na prática. A maioria das pessoas admite que, se há um Deus, Ele deve nos amar. Mas existe uma diferença decisiva entre um grande amor, ou um amor muito grande, ou um amor muito, muito grande e um amor que é incondicional. É à distância que existe entre o que é finito, seja tão grande quanto for, e o que é infinito.
Todas essas posições, bem como a menção, como mera possibilidade, de que a função do inferno é permanecer vazio (conforme a anedota do Abade Mugnier que abre esta nota), podem ter parecido controversas ou pouco ortodoxas o bastante para justificarem a censura.
Resta porém a possibilidade de que o motivo da supressão tenha sido ainda mais prosaico e mais mesquinho. Afinal de contas, o universalismo de Tournier parece ficar bastante estabelecido no capítulo 21, que não foi censurado da versão brasileira:
Salvação não é mais uma idéia remota de perfeição, para sempre inacessível; é uma pessoa: Jesus Cristo, que veio a nós, veio para ficar conosco, em nossas casas, em nossos corações. O remorso é silenciado pela sua absolvição. Todos os homens podem se beneficiar desta expiação única; todos os homens, de fato, “todo o mundo” como João afirmou (1 Jo 2:2). Jesus Cristo morreu por todos sem qualquer distinção, para homens de todas as idades e regiões, para hindus, para budistas, para muçulmanos, para pagãos e para ateus; basta que nele creiam.
Não é impossível, portanto, que a raiz da controvérsia tenha sido as duas ou três ocasiões em que, no capítulo 22, Tournier sugere que os católicos acolhem e aplicam de modo menos neurótico do que os protestantes a boa notícia da graça:
É significativo o que um dos meus pacientes protestantes tenha dito: “O protestantismo me parece com um enorme esforço para se ganhar a graça pela boa conduta, enquanto que o catolicismo distribui esta mesma graça a todo aquele que a procura com um padre”.
Também aqui:
O moralismo restabeleceu a ideia de mérito, de uma graça que é condicional. E, em certos círculos protestantes, estas condições se proliferaram tanto e ficaram tão rígidas que se tornaram opressivas.
E aqui:
Em um dos círculos intelectuais católicos, um teólogo, Jean Guitton, afirma que “uma das implicações da doutrina cristã da graça é a natureza gratuita dos dons que são oferecidos a nós”. Fico agradavelmente surpreso ao vê-lo acrescentar que “esta é uma implicação sobre a qual os protestantes pensam, talvez com mais frequência do que nós”. Infelizmente, tenho a impressão que esta homenagem ao protestantismo seja imprecisa.
E aqui:
Contudo, noto uma maior proporção de pessoas oprimidas por esta deturpação entre os protestantes do que entre os católicos.
Pois, como eu mesmo já tive ocasião de aprender, em muitos círculos evangélicos desafiar abertamente a ortodoxia é visto como pecado menor do que mencionar o catolicismo numa luz positiva. Essa imprudência, em conjunto com a ameaça de ecumenismo do capítulo 24, podem ter representado a ofensa sem perdão que mereceu o silenciamento de Tournier.
O que é certo é que Paul Tournier (1898-1986) não escreveu Culpa e graça para gerar controvérsia ou para produzir uma revisão na ortodoxia. Seu propósito declarado foi ensinar seus colegas médicos a tratarem seus pacientes como gente – aquela postura que viria a ser conhecida como “medicina integral” e da qual Tournier é um dos mais celebrados precursores.
Tournier sonhava com um dia em que os médicos deixassem de olhar seus pacientes como pedaços de carne que só carecem de cura física, um dia em que os cristãos deixassem de ver as pessoas como almas desencarnadas que só carecem de salvação.
Os médicos já estão fazendo a sua parte.

Por Paulo Brabo

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