"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 24 de julho de 2011

A casa física e aquela psicológica

Adriana Tanese Nogueira


"Casa arrumada é assim:



Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz. Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas... Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida... Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam

de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança. Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto... Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos, netos, pros vizinhos...E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia. Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente. Arrume a sua casa todos os dias. Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela... E reconhecer nela o seu lugar." Carlos Drummond de Andrade





A casa física reflete nossa casa psicológica. É um conceito tão simples quanto difícil de entender para algumas pessoas. O problema é a parede de cimento que se coloca entre o mundo de fora e aquele interno. Há muros tão sólidos que a pessoa não tem noção alguma do que vive dentro delas. Porém, olhar para sua casa, para como está organizada e "vestida" revela o ser interior.



Muitos homens não sabem cuidar de sua casa, assim como não sabem cuidar de si mesmos. Não cozinham, não lavam, não arrumam. Há homens que sequer usam o protetor solar porque "sabe como que é homem...". Existem indivíduos que mal escovam os dentes ou cortam as unhas de seus próprios pés, quem diria passar um pano nos móveis, comprar flores para a casa e ter o respeito que o lar merece. Afinal, é nele que voltam ao final do dia.



Há mulheres que vivem cuidando da casa, arrumam e limpam tanto que não lhes sobra tempo para viver na casa, para desfrutá-la. Seu limpar tem um quê de obsessivo e uma pessoa justamente pode se perguntar se a sujeira e a bagunça da qual estão querendo se livrar encontra-se mesmo em sua casa. Ou não estará dentro delas? O excesso de cuidado com a casa é o reflexo da ausência de cuidado consigo própria. A mulher super higiênica e organizada na casa é a alma gêmea do homem que come deixando um trilho de migalhas em seu caminho, logo após ela ter passado o pano no chão.



Saber cuidar da própria casa é terapêutico. Crianças de ambos os sexos deveriam ser educadas desde cedo para terem respeito pelo lugar onde dormem, comem e passam seu tempo. Não só, fazer uma boa manutenção do próprio espaço é um expressão da consideração que uma pessoa tem para consigo mesma. Isso inclui não só guardar os brinquedos e a própria roupa, mas positivamente limpar a casa. O desprezo que os homens sentem por essa tarefa cabe às mulheres extirpar. É só deixar a casa virar um chiqueiro e qualquer um que duvidasse vai ver como é bom ter um lugar limpo. E se quiserem saber qual é a diferença entre a limpeza impessoal e aquela personalizada e atenta, basta fazer a comparação entre um hotel cinco estrelas e a casa de uma pessoa que cuida com carinho de sua casa. A energia do lugar é completamente diferente. E é dessa energia que se vive quando se volta para casa, é esse calor invisível e acolhedor que garante o sentimento de segurança.



Pessoas que possuem ordem e clareza mental não conseguem trabalhar num local desorganizado e sujo. Não precisa ser brilhante e impecável, mas ver roupas e sapatos no chão, papeis espalhados, poeira cobrindo móveis, piso manchado, pia lotada de pratos para lavar... é intragável para quem tem um mínimo de auto-estima.



Por outro lado, a casa é um instrumento do nosso viver, um espaço temporário, um meio que deve servir para um fim maior. Esse fim chama-se "o nosso viver". Se nossa vida está vazia ou se o que há nela não nos satisfaz mais, está atrasado no tempo ou esclerosou-se, então por mais que queiramos uma casa perfeita, ela nunca estará porque o que estamos tentando arrumar através da casa é nossa vida, e esta não se conserta limpando casa. É preciso arregaçar as mangas e se dar ao trabalho de ouvir a própria voz interior e se conhecer. A casa que precisa de cuidados é aquela que vive dentro de nós.



Numa perspectiva holística, é natural pensar a casa como o espelho da vida interior de cada um. Uma pessoa que está bem consigo e com sua vida, cuida de seu espaço. Aquela deprimida e insatisfeita se arrasta. O brilho do sol está nos olhos tanto quanto nos quartos. Ou não existe, é fictício, brilho de bijuteria ou escura solidão.



P.S. A casa da imagem foi pintada por minha filha quando ela tinha 5 para 6 anos. Note-se a mandala no centro da casa, símbolo de ordem psíquica, centramento, segurança e saúde mental. A porta está aberta para entrar e sair. No céu, há um sol que é também uma estrela cometa, annunciação do divino. Ou seja, a casa era segura e confiável.

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