"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Religião e Alienação

Adriana Tanese Nogueira


"A religião é o suspiro da criança acabrunhada, o coração de um mundo sem coração, assim como também o espírito de uma época sem espírito. Ela é o ópio do povo." Karl Marx





Essas palavras, profundas e perspicazes, soam ainda atuais. Elas não pregam contra a religião em si, como convenientemente foi interpretado. O pensamento de Marx é muito mais radical do que isso, e mais perigoso. Perigoso porque descortina um ponto de vista que leva à mudança efetiva.







A "criança acabrunhada" é a pessoa prostrada, aflita e atormentada. Ela é uma "criança" porque se sente impotente e só, desamparada e sem noção do que está acontecendo. Esta criança está em todos nós, em algum (ou muitos) momentos da vida. Vemos-nos jogados nessa Terra sem entender porquês que permanecem, muitas vezes, sem respostas, instigados por situações e impulsos internos dos quais não possuímos visão clara mas que nos levam à novas situações, impulsos e ações. A criança acabrunhada somos nós quando nos dobramos pela dor. E levantamos os olhos ao céu. O suspiro que essa criança solta, cheio de tristeza e de esperança reprimida, como quem não ousa mais esperar na felicidade, preenche as igrejas.





Nas orações, os fieis projetam seus sonhos e desejos. Na religiosidade dessas pessoas está condensado o afã por uma realidade melhor, plena e livre. Busca-se aconchego e proteção contra um mundo sem sentimento, áspero e cruel. A inquietação e insatisfação pelo presente encontra ouvidos na espiritualidade, como se esta fosse um quarto acolhedor dentro de uma casa sombria. Para aguentar o tranco, se visita esse quarto e lá se depositam os segredos mais íntimos do coração. Em seguida, se volta para o mundo e se continua a vida "do jeito que ela é".



O Espírito do qual fala Marx é o sentido que dá identidade à história e seus protagonistas. Ele é aquela visão de conjunto que encontra um lugar para cada coisa e as moves segundo trajetórias que têm valor para além do umbigo individual. O Cristianismo, tradicionalmente, oferecia esse Espírito ao explicar o por que do sofrimento humano e da injustiça. Na perspectiva cristã, porém, a realidade é "vontade de Deus". Resta-nos nos assujeitar a ela. Cada um tem o lugar que tem por alguma razão, a qual pode ser-lhe incompreensível mas que está clara na mente de Deus.



Apesar das mudanças sociais e culturais ocorridas nos últimos quase dois séculos desde Marx, da multiplicação de variantes cristãs e da mistura entre diferentes religiões, essa forma de entender as coisas continua empregnada na psicologia individual como postura interior inconsciente que norteia o entendimento da espiritualidade, da vida e dos anseios individuais. Segundo esse ponto de vista, é preciso aguentar e levar adiante. Por este motivo, refugiar-se numa religião para desabafar a dor a respeito de uma vida infeliz equivale a uma droga. Como em qualquer adição química, a droga é usada aguentar a vida. Pela droga tem-se a ilusão de estar tendo uma vida diferente. Após desfazer-se o efeito da droga, se volta ao real. Daí a necessidade de usar mais droga para prolongar a ilusão.



Esse tipo de religião se torna uma forma de manter os seres humanos moralmente dobrados à realidade e mentalmente submissos ao status quo. Ela se nutre e cresce graças ao sofrimento humano: quanto maior a infelicidade mais forte a religião. E, assim como com as drogas, quanto mais intenso o uso que delas se faz, mais fraca é a força de vontade da pessoa, menor sua ação criativa, mais baixa sua auto-estima, mais inútil ela é como cidadã do mundo.



Que o universo contenha muitos mistérios além dos que podemos compreender, que há inquietantes percepções do que está além do visível não desmerece a crítica marxiana. Mistérios invisíves co-existem com a realidade visível, e usá-los para justificar o que temos debaixo do nariz é desempoderamo-nos como humanos. Uma religião que cortas as asas e "apazigua", no sentido de conformar e manter o jogo andando é, literalmente, um ópio.



Mas não é só isso, Marx vai além. O elemento focal, a essência da alienação que tais religiosidades promovem é que elas interpretam a espiritualidade como alheia ao mundo. Encontramos aqui a mesma cisão cartesiana entre corpo e alma que levou à abordagem ao corpo como uma máquina e à cegueira a respeito das influências psicológicas sobre ele. No caso das religiões, elas não são apresentadas como instrumento para mudar o mundo, mas como muleta para suportá-lo, criando nele um espaço de sobrevivência individual. Falta qualquer visão coletiva e social, bem em sintonia, aliás, com o individualismo moderno e protestante. A única vez que o Cristianismo se fez uma revolução social, depois de seus primeiríssimos tempos lá 2000 anos atrás, foi com a Teologia da Libertação (rapidamente reprimida), a qual levou a sério o "seja feita a tua vontade como no céu assim na terra", no sentido de: vamos então pôr em prática essa vontade, já que Deus não pode querer que o mundo seja governado pela injustiça, pelo abuso e pela maldade.



As tentativas de "alterar" a realidade encontram-se sempre no campo individual ou familiar e estão voltada a "acalmar" e devolver as coisas (leia-se, relações e identidades) a um modelo que é, nada mais nada menos, que o estereótipo. Além disso, essas ações espirituais no mundo possuem sempre uma conotação fortemente promocional: quer-se demonstrar uma verdade dada vendendo o peixe de cada grupo, como se a felicidade humana pudesse estar vinculada a marcas.



Para finalizar, o que castra por completo a possibilidade da espiritualidade transformar o mundo é seu estar atrelada à antiga perspectiva cristã que abomina conflito, atrito, oposição. No campo religioso, é o pavor da heresia. No campo social, do subvertemento da ordem. No campo individual, do conflito e da tensão. Evitar a tensão leva ao conformismo e à covardia, ingredientes indispensáveis para promover indivíduos submissos e fracos, e a adição química. Qualquer drogado é conivente com o sistema que o oprime.



Uma religião que promove pessoas dependentes, que repetem refrões, que não possuem pensamento crítico, que são dóceis ao mundo e à sua organização, que pensam em evangelizar mas não em melhorar a vida no planeta, que não enxergam as conexões entre os interesses poderosos dos Empresas Religiosas e aqueles das Empresas de que governam o mundo, tal religião é o ópio do povo. Religião que serve é aquela que, obviamente, não faz distinção entre "macho e fêmea" e que não tem medo do conflito. Ela impulsiona à liberdade de pensamento, à criatividade individual, à ousadia revolucionária, ao senso crítico, ao amor universal e à consciência da importância do papel individual na criação "do reino de Deus".

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