"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 14 de junho de 2020

Singularidades

Os índios Kayapó, sabiamente, denominam “pe-o caprin” o papel-moeda
utilizado pelo homem civilizado. “Pe-o caprin” significa “folhas tristes”.
Geralmente a felicidade do homem civilizado se confunde, de algum modo,
com o acúmulo das “folhas tristes”, ignorando qualquer outro bem que esteja
dissociado disso. Mas se o dinheiro é chamado de “folha triste” pelos Kayapó, é
porque ele reproduz infelicidade, assassina as relações afetivas, desencoraja os
homens a serem fortes e guerreiros, tornando-os mesquinhos e inconfiáveis –
com efeito, tudo isto chega a colocar em risco a existência das próximas
gerações. É o espírito triste que envenena o macromundo, que dissemina a
forma-Estado, que se submete à Igreja e ao capital, que guerreia entre si por
causa da “folha triste”... Mas os micromundos são impossíveis de serem
envenenados, são dominadores desde sempre, e são eles que podem nos redimir
do entristecimento e da “vergonha de ser um homem”: a felicidade que
provém da criação, que é fruto da nossa aliança com os micromundos, é a
nossa maior arma para resistirmos à captura da vida singular pelos sujeitos
entristecidos. Chamamos de singularidades criadoras as existências que têm
consciência de que jamais irão se repetir, e que por isso se tornam fortes,
corajosas e autodeterminadas, cuja tarefa de obrar sentem com grande orgulho
e felicidade. As singularidades criadoras rompem com o senso comum, lutam
para não serem capturadas pelo julgamento dos que querem introduzir nas
suas consciências a vergonha de serem... singulares. Viver de modo feliz com a
sua própria singularidade é uma conquista árdua, pois implica renascimentos e
pontapés nos reprodutores de infelicidade – estes, por não compreenderem o
que é um espírito alegre, estão inevitavelmente inclinados à inveja e ao ódio.
Através da experiência da felicidade temos a liberdade de matar a vontade de
acumular as “folhas tristes”, de matar a crença na imortalidade da alma e
também os temores que são difundidos todos os dias pelos homens-tristes-queinteriorizaram-
o-Estado... Sentimos, através de uma certeza alegre, que não
somos um pedaço de matéria insignificante no universo, mas uma vida
singular que se alegra por, justamente, ser única. Portanto, o Universo, o Todo,
o Absoluto, seja o nome que quisermos dar para isto que nunca deixaremos de
ser, ontem, hoje e sempre, é, para nós, uma realidade eternamente constituída
pela continuidade de singularidades criadoras.

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