"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 14 de junho de 2020

Entristecimento

Ninguém está destinado à tristeza, assim como também ninguém está
destinado à alegria, pois não existe algo de misterioso que seria a causa desses
afetos, como se a existência de alguém já estivesse determinada a ser de um
jeito ou de outro. Impedidos de existir de acordo com aquilo que é vital (que é
o desejo de amar e de ser generoso), os indivíduos entristecidos certamente
têm consciência daquilo que os atormenta – isso eles sentem, ninguém precisa
convencê-los do seu cansaço. Diante dos valores estabelecidos, fazer parte do
jogo imundo que reproduz a tristeza de outras pessoas parece ser, para a
maioria, a melhor opção para administrar a crise que dominou a própria
existência. Procura-se, apenas, tolerar a crise que é existir. Por isso que, para
nós, trata-se de um entristecimento tolerado. Os conluios entre políticos,
empresários, juízes e intelectuais ocorrem simplesmente porque eles estão
tristes – por serem facilmente corrompidos, não podemos nos espantar que eles
queiram cada vez mais o poder, seja na mídia ou no Estado, onde sentem-se à
vontade para vomitar suas mazelas com o microfone e uma coluna de jornal
nas mãos, abastecidos financeiramente por quem tem o interesse em
disseminar o ódio através deles. Criticam porque estão amargos e tristes, e
estão tristes porque não criam (Godard já dizia que uma crítica será sempre
inferior à criação artística), e não podem criar enquanto são ignorantes das
causas do seu entristecimento, pois, afinal, imaginam que é impossível viver
sem a organização exterior de horários, deveres e títulos que multiplicam a sua
tristeza... Muitos jovens incautos são contaminados por quem quer demonstrar
erudição e grande capacidade de articular ideias. São os que falam sobre tudo,
uma verborragia sem limites, um pedantismo que parece ser incurável. A
inteligência seduz e captura, e isso é demonstrado todos os dias... Os sujeitos
tristes precisam mentir e mentir para continuar a enganar a si mesmos;
precisam roubar e roubar para continuar com a sua própria existência roubada;
precisam acusar e acusar para continuar a esconder aquilo que fariam os outros
sentirem nojo deles. Eles precisam de polícia, precisam também de narcóticos,
precisam também de bajuladores, precisam também disso e mais isso... Sempre
falta algo para eles não se entristecerem demais. Não há mistério: indivíduos
tristes precisam de capitalismo, de Estado, de “juízo final” e “salvação da
alma”. Ninguém é conservador e fascista por opção, mas por existir de modo
entristecido...Porém, para reforçar o que dissemos no início: ninguém está
destinado à tristeza...


Amauri Ferreira - Aforismo II

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