Por Anna Dent | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Kerry James Marshall, Past Times (1997)
O suposto perigo do tão chamado “dinheiro grátis” não ampara apenas
os críticos à renda básica cidadã (RBC). Ele está por trás das
narrativas e atitudes muito resistentes perante o trabalho e o nosso
sistema, tão favorável ao desemprego. O emprego remunerado é visto como
um dos sinais definitivos de de valor para a sociedade; aqueles que não
estão nessa posição (algo visto como resultado de ações voluntárias, e
não de questões que não controlam) são vistos como aproveitadores.
Opõem-se quem está fora do mercado de trabalho aos que estão dentro:
vagabundos versus esforçados, “dependentes do bem-estar” versus famílias
trabalhadoras.
Aqueles que têm emprego remunerado, trabalham duro e estão
constantemente ocupados são presenteados com uma medalha de orgulho. Há
setores inteiros que prometem fazer-nos mais produtivos e eficientes.
Para alguns, o trabalho árduo é exigido por meio de monitoramento do
espaço, de intervalos absurdamente curtos ou das expectativas de que
estejam sempre disponíveis — por exemplo respondendo emails fora do
escritório. O Trabalho é idealizado como o provedor de sentido de nossas
vidas, embora nos remova, ao mesmo tempo, de outras fontes de sentido,
como a família, os amigos e a comunidade, ao exigir longas jornadas e
horas extras não remuneradas. Os efeitos negativos psicológicos, sociais
e físicos dessas narrativas e suposições agora estão sob investigação, e
a centralidade do trabalho em nossas vidas e sociedades, questionada.
Resultados preliminares sobre o experimento finlandês
de renda básica demonstram que recebê-la altera muito pouco — ou nada —
a probabilidade de seus beneficiários recusarem trabalho remunerado.
Isso leva alguns a sugerir que o experimento falhou — e de fato, o
governo da Finlândia tinha esperanças de que aumentaria a participação
no mercado de trabalho. No entanto, apesar de não ter sido uma
experiência de renda básica cidadã completa (universal, incondicional,
não retirável e não dependente por testes de eligibilidade), está sendo
celebrado pelos apoiarores da proposta, já que fornece evidências
importantes sobre a interação entre renda básica cidadã e trabalho. Uma
das principais objeções é que ao receber “dinheiro grátis”, os
beneficiários perderiam as motivações para procurar trabalho. O caso
finlandês mostra que não é assim.
A noção que o emprego pago é a cura para todos os males tem sido
seriamente erodida, se é que algum dia já foi verdadeira. O trabalho
como melhor saída para a pobreza pode ser uma ideia verdadeira para
alguns. Mas na maioria das famílias em situação de pobreza, no Reino
Unido e em muitos paśies, pelo menos um dos integrantes trabalha. A
probabilidade de as pessoas ficarem presas a empregos de baixos salários
e pouco qualificados é significativa, e o trabalho árduo dos mais
pobres nada tem feito para reduzir desigualdades econômicas. Junte-se a
isso o risco potencial de muitos empregos e setores serem substituídos
pela automação e inteligência artificial (apesar de que devemos ser
cuidadosos para não exagerar nesse aspecto), e a implacável priorização
do trabalho remunerado parece ainda menos defensável.
Mesmo quando subordinamos sentido a emprego, ou nos envolvemos em “empregos de merda”
sem sentido, como David Graeber sugere, não podemos negar que o mundo
do trabalho está mudando. Mudanças climáticas, migração em massa e
mudanças tecnológicas contínuas terão impacto no que “trabalho”
significa, e de maneiras que ainda não podemos prever com precisão.
Na opinião de seus propositores, a renda básica cidadã oferece um
colete salva-vidas e um caminho para enfrentar alguns desses desafios.
Ela pode garantir um piso salarial estável, um mínimo garantido abaixo
do qual não há queda. Dependendo da quantia paga, poderia permitir que
trabalhadores que recebem baixos salários recusassem as piores ofertas
de trabalho, ou que se afastem por algum tempo para se reciclar, ou
começar um negócio. A RB compensaria financeiramente aqueles
(normalmente mulheres) que cuidam de suas famílias, ajudaria mais
pessoas a desenvolverem sua criatividade aplicando-a em trabalho
voluntário, ou simplesmente a não fazerem nada. Nos EUA, propostas para
um New Deal Verde,
abraçada pelos democratas Alexandria Ocasio-Cortez e Ed Markey, parecem
defender algo como a renda básica — potencialmente para aqueles “sem vontade” de trabalhar, mas isso é apenas um detalhe.
A renda básica não foi desenhada para promover a “preguiça” ou
qualquer outro tipo de comportamento, mas simplesmente permitir que
indivíduos tomem suas próprias decisões sobre como querem passar seu
tempo. A pura ideia de uma RB não sustenta nenhuma posição inerente
perante o trabalho remunerado, mas promete liberdade e escolha. Nos anos
1880, na obra O Direito à Preguiça, de Paul Lafargue, o
direito de trabalhadores (em oposição aos ricos) à preguiça foi
construído como uma rejeição explícita à ética de trabalho dominante, e
um caminho para a independência verdadeira, a liberdade da pressão para
trabalhar. A recusa de participar do emprego remunerado ainda é
considerada por alguns como uma estratégia ativa de resistência ao
neoliberalismo. Uma renda cidadã como uma maneira de viver com segurança
sem emprego aparece regularmente sobretudo em discussões de esquerda
sobre o pós-trabalho, questionando a centralidade do assalariamento em
nossas vidas e sociedades, e nossa habilidade de nos libertar, ou de
sermos libertos de nossos papeis como trabalhadores pagos.
A probabilidade de qualquer país ocidental introduzir a renda cidadã a
um nível que permita ao trabalhador médio retirar-se do emprego
inteiramente é extremamente baixa. Na Finlândia, os participantes do
experimento receberam 560 euros (2.400 reais) por mês; em Ontário, no Canadá, os beneficiários tiveram a garantia de uma renda mínima de 16.989 dólares
— R$ 65 mil — por ano). A maior parte das tentativas atuais ao redor do
mundo retrata ativamente a renda básica como uma política pró-emprego,
que suaviza as pontas finas dos sistemas de benefícios e as inseguranças
do mercado de trabalho moderno, para tornar o emprego mais factível,
atraente e sustentável. A visão utópica de uma vida de ócio na qual a
renda cidadã oferece padrões confortáveis de vida não está prestes a se
tornar realidade. Mas a ideia de trabalhar menos e receber uma renda
estável, humana e básica ganha impulso e começa a influenciar o debate
de maneira inimaginável há dez anos.
FONTE: https://outraspalavras.net/
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