"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

terça-feira, 14 de setembro de 2021

A diferença sutil entre potência e empoderamento

 

Tem algo antes da nossa consciência, do nosso sujeito, do nosso Eu, que seria um olho? Um olho espiritual, um olho do pensamento, um olho da consciência? Não, tem esse terceiro olho. Tem um “ele” em nós. Um “ele” entre eu e mim, que é mais importante e que vê que o “eu” e “mim” são afeitos desse “ele”. Esse terceiro olho. Esse terceiro olho quebra o espelho, não precisa do espelho. 

Então aqui está a diferença sutil entre potência e empoderamento. O empoderamento depende sempre desse terceiro olho exterior. Depende de um plano de reconhecimento. De um olhar que te faz existir para o outro, que te faz existir para a sociedade. Agora, a potencialização depende da apreensão desse ser de potência em mim, em você, em cada um de nós. 

E quando eu começo a perceber esse ser de potência? Quando eu percebo que eu, que você, que todos nós somos seres de tempo. Somos feitos do estofo da duração. Nós somos seres que duram, essencialmente. A nossa essência é durar. E não há duração que não implique algo que jamais deixe de ser. Nós duramos a partir de algo que nos sustenta, que jamais deixa de ser. Que nos faz nascer, inclusive. Assim como nós não duramos, não teria o menor sentido durar sem se modificar. 

Então nós estamos entre algo que jamais deixar de ser e que dá sustentação à nossa duração, porque aquilo que dura perdura de alguma maneira; e algo que nos modifica, que nos diferencia, que nos singulariza, que nos faz diferir de nós mesmos, uma zona de passagem. Nós então estamos entre um ser de potência e uma zona de passagem, necessariamente. Nós somos uma linha esticada entre um ser de potência e uma zona de passagem. Entre um ser de potência e um ser do devir. Nós somos isso. Nós somos uma linha de tempo. Nós somos uma duração.

E toda linha de tempo ou duração tem um ritmo. À medida em que ela faz, ela é uma diferença entre a potência de acontecer e aquilo que dela difere. Ela é essa diferença. Ela é uma diferença entre a essência e a existência, entre o real virtual e o real atual. Todo o vivo, não só o vivo, todo modo existente, além da própria vida e na vida necessariamente, porque a vida é um modo da potência, é feito de uma potência e de um ato. É feito dessa dupla realidade, virtual e atual. E nós somos essa realidade em movimento, porque nós somos uma duração. Em mutação, em variação contínua. É essa a nossa essência. 

E quando retomamos isso? Suspendendo as demandas. Preferindo não. Não atender a demandas, não deixar que capturem ou sabotem o nosso tempo próprio. Percebemos o quê? Que há uma arte do acabamento. Nietzsche diz assim: “no ressentimento não se acaba nada”. O ressentido nunca acaba nada, ele não sabe acabar. O que é saber acabar? Saber acabar não é saber finalizar; saber acabar é saber efetuar. Nós temos que fazer uma distinção aqui, entre a finalidade do desejo, que daí seria de um desejo intencional; e a efetuação de um outro tipo de desejo, que daí é o desejo intensivo. O desejo intensivo se efetua; o desejo intencional finaliza, ele encontra o objeto, se preenche, se satisfaz, só que ele está produzindo um buraco nele. Mas o desejo intensivo, não, ele se efetua. 

E a efetuação implica uma curvatura. Ela implica um movimento de retorno. A lei do eterno retorno, Nietzsche viu muito bem. Tudo retorna, do ponto de vista da potência. Então há um retorno. Se nós somos seres de potência, à medida em que nós nos atualizamos, nós nos diferenciamos, e o que acontece nessa diferenciação é a produção de uma realidade, que parte dela retorna sobre nós e nos preenche enquanto intensidade. Nós somos preenchidos da intensidade extraída do próprio produto da nossa diferenciação. 

Então aqui existe uma questão política fundamental. Antes eu estava dizendo que Foucault dizia que o capitalismo roubou a dimensão política do desejo. Sabotou e sabota o tempo inteiro a dimensão política do desejo. Nós estamos aí à mercê de um Congresso, de um Supremo, de um ditadorzinho. Como disse alguém, “de um Napoleão de hospício”. Nós estamos aí reféns. Por quê? Porque a política foi sabotada. Mas a dimensão política essencial, ela está onde? Ela está no uso do tempo do nosso desejo, no uso do tempo próprio. O que o capitalismo faz de mais nocivo? Quando, de um lado tem esse direito abstrato de acumulação e de outro lado tem o incentivo para a disponibilização máxima das nossas forças e do nosso tempo próprio, para que esse capital invista, compre, enfim, e o nosso desejo se submete, o corte da nossa potência que se atualiza, o ato em que a nossa potência se efetua é um ato dado de fora, é um ato dado pelo interesse do capital, é um ato dado pela replicação, pela reprodução do poder do próprio capital.

Então é como um artista que é patrocinado por alguém, e esse alguém diz assim, “Ok, a sua obra vai até aqui, porque é isso que me interessa”. Para quê? Para fazer da obra dele uma mercadoria. Ora, o artista não pode se vender a esse nível, ou então ele perde o seu ritmo, ele perde a sua melodia, ele perde o seu tempo próprio. Ele perde aquilo que dá o retorno da potência para ele. É isso o que ele perde. Ele perde o ritmo, o ritmo dele é quebrado. 

Assim que se quebra o desejo: quebrando o ritmo. Desprezando o nosso tempo próprio. Não existe outra violência. A violência, essencialmente, é a quebra do tempo próprio de cada movimento vivo. Há um tempo próprio da vida. Quando desrespeitamos, esmagamos, oprimimos esse tempo próprio, impedimos que essa vida se torne um laboratório, um campo de experimentação e, portanto, uma força de criar real. 

Se há uma potência absoluta que se serve de nós, ela se serve de nós para que criemos a diferença. Nós somos meios de criar diferença. É isso que nós somos, essencialmente.
 

Luiz Fuganti

[Trecho transcrito da quarta aula do Curso de Introdução à Esquizoanálise, realizada em 10/07/2021]

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