Fábio Belo
Um egoísmo forte
constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos
começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se,
em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar. Isso acompanha mais ou
menos os versos do quadro que Heine traça sobre a psicogênese da Criação:
Krankheit ist wohl der letzte Grund
/ Des ganzen Schöpferdrangs gewesen; / Erschaffend konnte ich
genesen, / Erschaffend wurde ich gesund. [A
doença foi sem dúvida a causa final de todo anseio de criação. Criando, pude
recuperar-me; criando, tornei-me saudável.]
Reconhecemos
nosso aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a
dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou
teriam efeitos patogênicos. Sua elaboração na mente auxilia de forma marcante
um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou
para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. (Freud, ESB, XIV, 101-2;
)
Gostaria de usar essa passagem de “Para introduzir o narcisismo”
para desenvolver, brevemente, uma ideia: amar não é uma aposta em contraposição
ao amar contra o adoecer.
O que é uma aposta? Diz o Houaiss: “ajuste entre pessoas com
opiniões diferentes acerca de um fato, que será averiguado posteriormente,
devendo aquela que perder ou errar em seu julgamento pagar à outra o valor
anteriormente estipulado”. Trata-se, como vemos, de um tipo de disputa, de luta
entre dois. Não apenas isso: uma disputa que envolve um tipo de dobra ao
derrotado: além da derrota, deve-se pagar algo pelo erro. A palavra “ajuste” na
definição não é muito honesta: o fim da aposta não é bem um ajuste, mas uma
imposição programada. Travestida de justiça / ajuste, a aposta legitima a
imposição do que foi previamente estipulado. A honra dos apostadores, isto é,
não colocar em discussão, após finda a aposta, suas consequências, é também um
modo de impedir, legitimamente, que se reconverse sobre as condições da aposta.
Apostar tem um sentido muito positivo de se empenhar, acreditar,
ter fé, para além do sentido básico de arriscar. O prazer da aposta passa pela
confirmação de nossas crenças onipotentes sobre o mundo e o outro. De repente,
a certeza de que as cartas virão, o cavalo correrá mais, o dado irá parar em
tal número, a sorte virá. Apostadores, no entanto, não param de apostar mesmo
depois que ganham. Seria pouco dizer que a motivação é apenas essa: vencer.
Temos que pressupor também que a aposta coloca sobre a mesa a imagem arruinada
de nós mesmos. Apostar é sempre correr o risco de perder. E essa perda pode
muito bem ser atribuída ao azar, ao destino, a um outro. O arruinado pela
aposta sempre terá o álibi do acaso para desresponsabilizar-se quanto ao seu
desejo de tudo perder. É como se ele precisasse dessa cena de desapossamento,
impotência radical de ver o dado em outra posição, o cavalo ficando para trás,
as cartas que nunca chegam.
A aposta brinca com essa moeda cujas faces são a onipotência e a
impotência. Sabemos como esses pares de opostos funcionam bem em nossa vida
psíquica. O que significa então propor que uma relação amorosa é uma aposta?
Que estamos sempre entre a onipotência e a impotência diante do outro. É
justamente isso o que a psicanálise deseja evitar.
Voltemos à citação de Freud. O egoísmo é uma proteção contra o
adoecer e adoecer significa sentir excitações “como aflitivas”, incapazes de
serem dominadas. Em contraposição a isso, é necessário trabalho psíquico.
Observem: o aparelho psíquico é um dispositivo que faz exatamente esse trabalho
de “ligação” / “escoamento” dessas excitações. Jean Laplanche insiste nesse
aspecto da pulsão sexual de vida. A tarefa dela é ligar a pulsão sexual de
morte, pura “aflição”, puro desligamento… Em grande medida, podemos chamar de
amor, trabalho de amor, essa tarefa de nos deixar menos aflitos. Entendam: a
onipotência e o desamparo como faces da mesma moeda aflitiva…
E o que isso tudo tem a ver com a citação de Heine? O que isso
tem a ver com criar?
Quero desenvolver a tese de que criar é o avesso de apostar.
Criar, especialmente se entendido a partir de Winnicott, é dar lugar em si
mesmo àquilo que é encontrado no mundo. Para Winnicott, o seio é criado na
medida em que ele chega no momento em que o bebê o deseja. Nem muito antes, nem
muito depois. E por chegar no momento suficientemente oportuno, o bebê é capaz
de criar
aquilo que encontra. Quanto mais desencontrada for a relação entre
o objeto e o desejo, mais o bebê entrará na situação de aposta. Seja na
vertente onipotente, seja na vertente do desamparo. Quanto mais no tempo for a
relação, mais capaz será o bebê de amar o seio, isto é, dar conta de suas
ausências, de seu modo de existir como independente de si mesmo…
Amar o objeto é ser capaz de tolerar e trabalhar sobre as
diferenças entre o seio que inventei-encontrei e o seio que realmente existe. O
seio que existe e estará sempre além e aquém daquilo que sou capaz de
inventar-encontrar engloba a autonomia radical do outro e fundamentalmente seu
inconsciente (algo que o próprio outro não controla). Quando amo não aposto na
relação: convido ao trabalho e à criação conjunta de uma área intermediária
entre a autonomia radical do outro e o que consigo criar-encontrar dele e nele.
Essa área intermediária, transicional, é um espaço potencial. Isso quer dizer
que algo da contingência está preservado pelo trabalho de amor. Esse trabalho,
na medida em que é criativo, abre-se também ao que ainda não existe. Ao
contrário da aposta, no entanto, a criatividade potencial não busca o excesso
da onipotência e nem o caos do desamparo. Essa criatividade conjunta, amorosa,
busca manter firme os contornos do eu e do outro para que ambos possam fruir,
cada um à sua maneira e em seu tempo, desse terceiro espaço que apenas o
encontro entre ambos faz aparecer. A aposta é o lugar do perder ou ganhar em
detrimento do outro. O encontro criativo e amoroso é o lugar
de, simultaneamente, deixar-se inventar pelo
outro, inventar-se e inventar o outro.
Fonte: http://www.fabiobelo.com.br/
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