"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

sábado, 12 de novembro de 2011

A ansiedade das coisas

Paulo Brabo



Em tempos mais sãos do que o nosso um homem começava a sentir nostalgia quando estava avançado na terceira idade, entrevendo já a última curva da vida. Hoje em dia a nostalgia é motivo de ansiedade para todos, democraticamente; até mesmo os adolescentes, garantem-me, tem já saudades sentidas e irresistíveis dos tempos idos da infância.



Não é na verdade coisa de se admirar, porque em tempos de mudança acelerada como o nosso muita coisa pode mudar nos três ou quatro anos informes que separam a adolescência da infância. Nostalgia é o clamor por pontos de referência que não existem mais, e na vertigem do século inúmeras referências perdem-se, transformam-se ou são substituídas em um ano ou dois, às vezes menos.



Um adolescente pode olhar ao redor e constatar lucidamente que os programas de televisão são outros, o tipo aprovado de música é outro; os brinquedos, os filmes, os heróis – que tudo mudou desde a sua infância recente, pela qual passa a sangrar de nostalgia tão sincera quanto precoce. O mesmo é ainda mais válido para quem passou dos vinte ou trinta anos de idade; quem sobrevive vinte anos num mundo de mudança vertiginosa como o nosso é obrigado a encarar que a realidade mudou tanto a ponto de se tornar meramente reconhecível. Os pontos de referência ruíram, o vento levou, o gato comeu, e a mudança torna-se motivo de ansiedade, a velhice chega antes do meio da vida e a nostalgia consome e oprime.



O motivo desta nota é lembrar, com inevitável nostalgia, dos tempos em que não era assim. Houve tempo em que o mundo girava sem se fazer notar e as manchas solares não causavam perturbação maior. As pessoas, conta-se, paravam para conversar e comer. Faziam coisas insensatas como serenatas e bilboquês. Nesta galáxia distante de que estou falando os seres humanos eram tão pouco materialistas que podiam dar-se ao luxo de apegar-se a coisas e, para que não tivessem que se preocupar muito com elas, as coisas eram feitas para durar.



Com cinqüenta anos de idade um homem ganhava o relógio ou o violino do avô, e orgulhava-se de poder colocá-los em uso imediato; com setenta anos, o sujeito usava ainda a caneta ou o serrote que tinha sido do seu pai. Coisas como bengalas, máquinas de escrever, escrivaninhas e panelas, abridores de cartas e até mesmo roupas tinham a sua utilidade prolongada por gerações. Os mecanismos eram menos complexos e as coisas podiam ser eficazmente consertadas. As pessoas lubrificavam as coisas, trocavam seus cabos, lixavam e poliam.



Como não saltavam na nossa cara exigindo serem trocadas, as coisas tinham um status menor e não eram motivo de ansiedade. Como sobreviviam às pessoas, algumas coisas transcendiam a sua condição e ficavam para sempre ligadas a um ser humano em particular: as pessoas acenavam com “o facão do meu bisavô”, “a poltrona da minha avó”.



Hoje em dia, e sem qualquer hipérbole necessária, um sujeito de vinte anos já perdeu a conta de quantas vezes trocou de modelo de telefone celular: o seu próprio telefone celular. Salvo como curiosidade, nada sobrevive a uma geração; nada com mais de dez anos é concebivelmente útil.



O paradoxo é que, como tudo que está disponível é tão irreversivelmente novo, tudo torna-se obrigatória e imediatamente velho. Mais do que nossos bem-intencionados avós poderiam imaginar, a abundância do novo deixou-nos cercados de coisas invariavelmente velhas e envelheceram as nossas almas. Das velhas fotografias, eles nos olham com peles e olhos mais jovens do que jamais chegaremos a ter.

Da Bacia das Almas

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