"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Simbiose no casamento


Adriana Tanese Nogueira
 
 
A simbiose é um conceito que pertence à biologia, e denota a associação entre dois seres que beneficia a ambos; melhor, ambos seres precisam de tal associação para continuarem vivos e produtivos. Já dá para entender como esse conceito é transportado para as relações de casal: os dois não conseguem viver um sem o outro.





Vamos começar fazendo algumas distinções. Toda relação se constrói a partir de uma "troca" que pode parecer e, muitas vezes, é simbiótica: pais e filhos, amigos, casais e até empresas, grupos e assim em diante. Se estamos num relacionamento é porque ele nos dá algo de importante. Que esse "algo" nem sempre seja saudável são outros quinhentos. Para o sistema mental da pessoa, para seus hábitos, medos e limites, a vantagem se apresenta de alguma forma como superior aos riscos que uma possível mudança traria.

Na relação entre pais e filhos, onde aparentemente, os filhos são os que ganham mais, é bom lembrar do espaço gigantesco que estes ocupam na vida e no coração de seus pais. Além de responsabilidades e problemas, crianças oportunizam adultos que, talvez nunca teriam essa chance, de se sentirem importantes, de estar "acima" de alguém - se amor e crescimento recíproco não fossem suficientes.







Uma segunda noção que precisamos esclarecer é a idéia de que quando se ama de verdade se tende a "não poder viver sem a outra pessoa". A atração sexual ou aquela íntima e profunda cria uma tamanha sinergia de forças que duas pessoas podem superar muitos obstáculos para estarem juntas. Por outro lado, porém, faz parte das qualidades do amor dar a força para aguentar a distância, quando ela for necessária. Distanciamento físico ou emocional podem marcar alguns momentos da relação amorosa. Porque ninguém é pronto e resolvido e porque a vida é imperfeita, amar não equivale a ter sempre momentos agradáveis e cheios de compreensão recíproca. Portanto, o "não posso viver sem você" do pique do amor romântico é um modo de dizer que tem valor num plano simbólico, enquanto que no concreto deve fazer lugar à maduridade de saber lidar com altos e baixos e com as contradições.





O casamento simbiótico é algo diferente. Ele é o resultado, geralmente, da união entre duas pessoas durante sua juventude, quando sua referência à família de origem e, sobretudo, às feridas e faltas que esta lhes deixou estão ainda fortemente gravadas na alma, gerando anseio por preenchimento. Os pombinhos inicialmente tendem a repetir o padrão mamãe-papai, prova é que há casais que chamam uns aos outros "filho" e "filha". Se o padrão de base das relaçãoes entre homens e mulheres é o do pai-filha e o da mãe-filho, nos casais simbióticos esse modelo é levado ao extremo, e literalmente os dois não sabem estar sem o outro. Falta-lhe autonomia e independência.





A ausência de autonomia é a incapacidade de realizar atividades próprias à personalidade de cada um, e tomar escolhas que dizem respeito aos gostos de cada indivíduo. A individualidade lentamente se eclipsa e os dois formam um todo informe no qual não se distingue mais quem é quem. Se a autonmia é a capacidade de fazer coisas sozinhos, independência é aquela de ter iniciativa por si próprios. A pessoa independente não pede permissão para fazer o que sente vontade e é importante para ela. Ela própria se autoriza, seguindo seus instintos e pensamentos. No casal simbiótico, esses dois aspectos essenciais para o desenvolvimento saudável do ser humano se perdem, ou são sufocados.





O casal simbiótico é como um indivíduo com duas cabeças mas um corpo só. Mentalmente, eles continuam se sentindo diferentes um do outro, sabem reconhecer perfeitamente as falhas e qualidades de cada um, os hábitos e preferências. Mas, por baixo dessa camada consciente, existe o emaranhado de sentimentos inconscientes que eles partilham e os amarram.





O nó da meada é que eles sua união é funcional à cada um conseguir ir adiante na vida. Psicologicamente falando, uma série de projeções foi realizada sobre o outro, investindo não só sua função (por ex., trazer dinheiro para casa ou cuidar da casa), mas um nível mais profundo. O outro representa um pedaço de si, ou vários pedaços de si, ocupando um lugar tamanho e de tal relevo na vida psicológica da pessoa que, no bem ou no mal, ela não consegue fazer sem.





O problema dessa situação é que não conta com as mudanças. Apesar de tudo, a força evolutiva do ser humano é fenomenal. Nada permance igual e tudo muda. Mudamos, queiramos ou não. Mesmo numa situação psicologicamente amputada, como a do casal simbiótico, a pressão interna na direção da individuação (que implica necessariamente em maior autonomia e independência) insiste e perturba. Aquele dos dois que está "para trás", aquele no qual este processo está mais sufocado, começa a se sentir inseguro e ansioso. Aquele que está "para frente", no qual a pressão interna tem mais via livre (geralmente de forma totalmente inconsciente), sentir-se-á "sufocado" pelo modelo de relação na qual está.





A vontade interna de novas experiências vai crescendo inexoravelmente. É como um cavalo jovem, cheio de vida e relinchando, desejoso de poder galopar livre pelas pradarias. Na falta da liberdade verdadeira, que só viria evoluindo para fora desse modelo de relação, duas coisas podem ocorrer: sufoca-se mais energicamente o espírito de liberdade, inclusive com a ajuda de remédios ansiogênicos e calmantes; ou se encontra essa autonomia de forma escondida e nos espaços mais ilícitos, como traições pelos cantos, mentiras e subterfúgios.





Transformar uma situação dessa para melhor é complicado porque toda e qualquer mudança é percebida pelo casal simbiótico como ameaçadora. É como dividir gêmeos siameses, grudados pelo corpo. Há o risco da morte, que no caso do casal simbiótico é o risco de matar a relação, ou o impulso evolutivo que exige que ela seja renovada e, com ele, aniquiliar a individuação de cada um. Entretanto, adiar o processo de mudança, uma vez que as sementes já foram postas, na forma de insegurança, ansiedade, desconfiança e mentiras, promete um futuro sombrio.





O paradoxo desse tipo de relação é foi justamente graças à simbiose que ambos os indivíduos cresceram como pessoas ao ponto de sentirem agora a necessidade interior de ir além. É por causa da simbiose que hoje cada um têm condições de poder ir adiante sem ela. O tempo está maduro, é hora de virar gente grande.
 

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