"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 12 de junho de 2011

As camadas do Mal: da Sombra a Jó

Adriana Tanese Nogueira


O Mal é um tema complicado. Há correntes teológicas para sua explicação, e há as psicológicas. As primeiras esbarram num paradoxo: o de um Deus que é por definição entendido como bom, mas que permite a existência do Mal. No século XXI, a doutrina do pecado original, apresenta-se fraca: como responsabilizar a criança trucidada numa guerra como consequência da desobediência do primeiro casal humano? Como pode Deus continuar permitindo uma coisa dessas? Essas são as perguntas legítimas do indivíduo comum que não é entendido de teologia e que não se satisfaz com fórmulas padronizadas de explicação.



A versão psicológica desse problema é junguiana (e, a partir dele, Montefoschi desenvolve o tema). Em seu livro conhecido, Resposta a Jó, Jung analisa a história de Jó da Bíblia e

tece suas reflexões que abrangem o psicológico num sentido amplo, quase filosófico. Não quero ser injusta com Jung resumindo de forma superficial seu livro, que merece um espaço só para ele, mas aqui bastará dizer que segundo ele, o Mal é a Sombra de Deus. Se observarmos que Lúcifer é um dos anjos "filhos de Deus" veremos que o Mal pertence à própria criação divina, lhe é inerente. Não vou me alongar por esta vereda psico-filosófica, porque o que me interessa aqui é o Mal que sentimos na nossa pele. De onde ele venha e o que seja, são outros quinhentos, vamos ver, em primeiro lugar, como se parece quando nos ataca.



O negativo dentro da psique individual se chama Sombra. Com ela, uma pessoa deve, mais cedo ou mais tarde, confrontar-se se quiser trilhar o caminho do auto-conhecimento e evoluir como individualidade. O reconhecimento da Sombra é liberatório mas também doloroso, porque obriga o ego a sair de sua zona de conforto e a ampliar seus horizontes. Do ponto de vista do posicionamento consciente da pessoa, Sombra é o que sua identidade considera "errado". Na sombra do asssassino está o homem sensível e naquela da "mocinha boa e cristã" inveja e prepotência. Na da dona de casa "feliz" encontra-se sua vontade de fazer faculdade e sair do controle financeiro do marido. Na mulher generosa e dedicada a uma causa vive o egoísmo e a ganância de poder, e no homem promotor do "protagonismo feminino" está o machista manipulador e egocêntrico.



Este primeiro estágio do Mal é pessoal. Ao enfrentar sua Sombra, a pessoa está fazendo as contas consigo mesma e saindo da Persona, ou seja da máscara que usou para denominar-se no mundo, ser identificada pelos outros e se entender como gente. Mas não termina aqui, é preciso ir além. Há camadas mais profundas da psique, ainda não alcançamos o inconsciente coletivo.





Num nível mais profundo, o que Jung sustenta é que em todos nós vive um potencial assassino. Todo humano tem a capacidade de sentir tudo o que é humano, inclusive seu lado tenebroso. Raivas poderosas e ódio abissal pertencem à natureza humana, elas estão testemunhadas ao longo da história. Que a maioria de nós vive alienada dessas dimensões se deve, em parte, às condições de vida em que vivemos. O mundo evoluiu bastante nesse sentido e certas coisas não acontecem mais com frequência.





Mas em nosso pequeno mundo privado, podemos tocar, com a pontinha dos dedos, estes estratos obscuros da alma quando nos permitimos perceber sentimentos dominantes e negativos, alguns dos quais porém são reações normais a eventos traumáticos. Entretanto, se, ao invés de agirmos a raiva, por exemplo batendo numa pessoa, nos segurarmos (porque quando se tem um certo nível de consciência não se consegue mais fazer certas coisas, certo?), poderemos ver a raiva em ação dentro de nós, sua extensão e profundidade. Quem tem fígado para encarar suas profundidades vai descobrir a fera dentro de si.





O efeito positivo dessa experiência é que ela produz a humildade que as pessoas que se consideram "equilibradas" e "boas" não possuem. É psicologicamente sadio sentir as raízes profundas daqueles comportamentos socialmente condenáveis. Reconhecendo o fundo humano desses sentimentos e emoções nos familiarizamos com nossa espécie e podemos nos permitir não só melhor compreender os outros, mas até mesclar nossa bondade com os temperos vindos daquelas regiões sombrias, tornando nossas ações mais realistas e eficazes. O que nos faz diferentes de um assassino é o fato de podermos escolher o que queremos ser.





Existe, porém, mais uma camada do Mal. Ela está representada na história de Jó, o sofredor inocente por excelência. Por obra do diabo, Jó perde, aos poucos, tudo o que possuia, inclusive, no final, sua própria saúde. Vamos deixar de lado as questões teológicas, ou seja o fato inquietante que Deus permite que o demônio, seu filho, aja librevemente. O que nos interessa é a perspectiva psicológica da pessoa que está sofrendo um mal injusto. Jó não merece ser dilapidado de suas riquezas, perder filhos e esposa, rebanho e casa. Ele não sabe porque sofre, só sabe que não fez nada de mal.



Quem já não se encontrou numa situação dessas? Os amigos de Jó insistem com a teoria que quem sofre é pecador. Podemos reconhecer esse ponto de vista em nós mesmos. Existe uma tendência inconsciente e automática que leva a acreditar que o mal tem uma razão de ser, e que esta se encontra no indivíduo sofredor. Pensar assim faz, inclusive, bem ao coração ingenuo, que quer ninar-se no sonho dourado que a dor é o resultado de pecado cometido. Quem está de bem com sua consciência não deveria sofrer "punições".





Aparentemente, a vida nega esse axioma. Não é verdade que coisas ruins acontecem somente a pessoas ruins (aliás, muitas vezes vemos exatamente o contrário, não é?). Ao olhar de perto, esta mentalidade na verdade parece infantil. Ela leva adiante o pensamento da criança que ingenuamente acredita que se ela for boa seus pais serão legais com ela, ou não irão brigar entre si. Que se ela for boa, eles não vão se separar ou ser tristes.





A bem ver, a psicologia não se afastou muito da linha teológica que responsabiliza o indivíduo por seus males. Se é verdade que a Sombra existe e precisa ser incorporada, inclusive para que seus efeitos deletérios cessem, é também verdade que nem por isso se chega a viver em "paz e alegria". O problema do Mal continua. Há a Sombra de tantos outros que permitem que suas maldades vivam soltas e livres, machucando por todo lado. Mas além disso, essa Sombra própria e alheia parece ser alimentada, carregada, instigada por algo mais porque vemos em certos momentos que o Mal como que "cai do céu".



O que a história de Jo ensina, sintetizando o pensamento junguiano é que ao sofrer na nossa pele o Mal nos tornamos conscientes de sua existência e refletimos, por consequência, esta nova percepção no conjunto total das consciências, conjunto que Jung chama Deus. Deus toma consciência do Mal que habita nele através de nosso sofrimento injusto que nos faz abrir os olhos para o Mal dentro de nós e fora de nós, e nos move na direção de sua superação.



Esta perspectiva com a qual concordo não me satisfaz por completo, porém. Do ponto de vista do pobre coitado que sofre, eu aprendo duas outras lições através do livro de Jó. Quando na vida real ocorrem situações similares à de Jó, dois fenômenos ocorrem em paralelo: o primeiro é que os outros de fato apontam o dedo e se afastam, como se o sofredor tivesse uma doença contagiosa. Se uma pessoa não é "popular", "sempre sorridente", possivelmente superficial e "bacana" ela não é bem vista e dela as pessoas se afastam. A massa comporta-se conforme manda seu instinto de rebanho e segue o mais forte. Se no mundo animal "mais forte" significa "mais confiável", naquele humano estamos muito abaixo dos animais. Entre nós "mais forte" definitivamente não significa mais confiável, justo e honesto. O sofredor, após ter recibido muitas pancadas está dolorido, e por isso não tem condições de erguer-se para um lugar de poder, seja ele como o bacana do grupo, ou o líder no trabalho, aquele que faz dinheiro, ou quem é respeitado por sua família. Quem sofre injustamente poderá encontrar-se também injustamente rechaçado, mal visto e mal interpretado. Poucos se darão ao trabalho de se aproximar e tentar entender o que exatamente aconteceu.





O segundo fenômeno lastimável que acontece é que, aos poucos, o sofredor passa por um segundo processo destrutivo, pior do que os olhares torpes sobre ele. O sofrendo injusto começará a sucumbir à dor no sentido de acreditar-se culpado, não merecedor, inválido, inútil, pequeno e insignificante. O massacre psicológico é potencialmente invencível. No decorrer do tempo (que poder durar anos ou uma vida inteira) o sofrimento injusto corrói a alma e a domina, a coloca de joelhos e incapaz de se reerguer e acreditar em si mesma. O resultado disso é a desistência: desistir da vida digna, da felicidade, da verdade, dos sonhos, da esperança. E é o triunfo do Mal.



A história de Jó nos apresenta um herói. Na vida real as coisas não são muito diferentes daquelas que ocorrem na história de Jó. Quem já passou por algo parecido vai entender a força moral que Jó precisou ter para aguentar tamanha judiação. Apesar de perder tudo, ficar reduzido a zero, Jó se mantém fiel a si mesmo e continua defendendo sua integridade. Ele não tem culpas. Ele não é pecador, não fez nada de errado. O fato dele não compreender porque está passando por tudo aquilo não o derrota psicologicamente. Só sabe que é injusto. E está é uma das verdades existenciais que extraímos dessa história: existe um Mal injusto.



Mas há também uma pedagogia psicológica importantes que Jó testemunha. Não só ele não se deixa abater (ou seja, mantém sua auto-estima, e só quem sofreu longamente sabe como isso é difícil), como ele não se entrega ao Mal, acatando-o e se tornando ele próprio uma pessoa má. É comum encontrar pessoas que se tornaram tão insanas quanto aquelas que as fizeram sofrer (Paulo Freire descreveu bem esse processo em sua Pedagogia do Oprimido). Prova é que há gente se acreditando "madura e sábia" mas que expressa um frieza de coração assustadora, sem falar daquelas que manifestam cinismo e oportunismo descaradamente.





Jo não faz nem uma coisa nem outra. Ele não se arrasa (não vira alcólatra, drogado, prostituta, não "liga o f.-se" e avança na vida como um maluco), não se reduz a um caco humano (não vira cínico, sarcástico, duro e fechado, insensível), mas também não passa a atuar como uma força negativa (oculta ou explícita) junto aos outros (manipulando, sabotando e se aproveitando). Ele aguenta o sofrimento que se abateu sobre ele. Deve ser por isso que no final tudo termina bem e ele recupera tudo o que havia perdido.

Um comentário:

Maria Cristina G. Oberg disse...

Uma belíssima escolha para o seu blog!

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