"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Como seria uma educação com base no pensamento afirmativo da vida?

 

Uma educação centrada no pensamento afirmativo da vida não prescreve regras absolutas nem proibições definitivas. Ela orienta e desperta a vida, estimula as multiplicidades, não para esmagá-las, mas para exercitar o corpo e o pensamento a vivenciarem seus limites e ultrapassá-los. Uma tal educação deseja que a vida seja forte, que o corpo e o pensamento aumentem suas potências de agir e pensar e aprendam o quanto antes a conviver com os perigos e a desejar o desconhecido. Ela lapida as potências da vida para expandi-las. Exercita o corpo e o pensamento para conhecer cada vez mais o que podem e superar o que ainda não podem. Tal prática pedagógica, se é que ainda a podemos chamar assim — pois em nada se assemelha à prática educacional estabelecida —, procura afirmar as diferenças, criando o desejo e o amor pelo distante, amor pelo devir, amor pelas aventuras, pela viagem nômade que se faz não no espaço, mas no tempo. Ela prepara o corpo e o espírito para enfrentar as turbulências do acaso e os riscos do imprevisível, coisas que só as vidas nômades conhecem e têm força para enfrentar, porque são capazes de respeitar e admirar tudo o que é estranho, as diferenças e as intensidades livres, os mistérios e as maravilhas da vida.

Uma educação centrada no pensamento afirmativo da vida é sobretudo cruel, ao contrário da pedagogia piedosa e vingativa. É cruel com o corpo e com o espírito, não porque quer arruiná-los, mas, ao contrário, porque quer vê-los fortes, ousados e poderosos, deseja vê-los capazes de enfrentar qualquer acontecimento e de caminhar livres, com a sabedoria alegre do riso. Talvez tudo o que tal educação deseje seja preparar vidas para que se tornem capazes de sorrir. Só as vidas corajosas riem de fato e jamais se arrependem ou se ressentem do seu passado — porque não temem o acaso, tampouco o acusam, não querem dividi-lo covardemente entre Bem e Mal. É possível que um ser humano de tal calibre se encontre com a loucura, mas não deixaria de ser uma “grande loucura” ou, para usar as palavras de Nietzsche, uma “grande saúde”. Essa educação tentaria ligar outra vez o desejo e o pensamento, sem piedade, mas com crueldade.

Essa educação já foi formulada? Ou esboçada?

É uma educação que ainda está por ser inventada. É preciso restabelecer a fabulação. Não a esperança. O Fabular! Ousar uma vida diferente, arriscar novas maneiras de viver e de pensar. Fabular nada tem a ver com fabricar ilusões. A concretude da vida, sobretudo das vidas alegres, começa pela potência onírica. É preciso começar a habitar realmente este universo. É preciso que os seres humanos acordem. Não todos, é claro, mas pelo menos alguns, porque sabemos que muitos — talvez a maioria — continuarão dormindo. Ou, pior, desejarão continuar dormindo; e com relação a esses, não os perturbemos, desejemos que seu sono seja leve, porém definitivo. Mas para quem experimenta, em vigília, o fantástico no real, sim, estes compreendem a palavra “invenção”. Sabem que não há um mundo pronto. O mundo que os homens chamam de “real” não existe. A realidade não é algo acabado cujo peso devemos carregar. Mundo real? É preciso que o inventemos. A realidade é produção desejante, não acomodação resignante. A adaptação a uma suposta realidade já configurada é uma tendência própria daqueles que gostam de se conservar, de se preservar, de se proteger; é a inércia preferida pelos corpos impotentes cujo desejo faliu e que precisam se garantir contra o devir, na estupidez do modo de vida burguês. As vidas ativas, ao contrário, não acreditam na adaptação a uma suposta unidade ou substância do real, mas na criação de multiplicidades singulares moventes, onde nenhum fundamento paralisador subsiste. Elas se movem no seio da metamorfose eterna, enquanto artistas sem identidade. O indivíduo deixa de ter uma substância — o Eu pessoal é demolido, o nome próprio emerge para designar intensidades nômades. Eu não sou eu, sou nós, sou uma natureza múltipla, sou uma pluralidade de forças, uma composição de afetos diversos que tecem o corpo. Nessas condições, dissolvem-se a identidade do Eu e a semelhança ao Tu.

Não somos iguais perante qualquer lei nem tampouco semelhantes uns aos outros. Tudo o que nos cabe como artistas é afirmar nossa própria diferença e as diferenças de tudo o que nos cerca ou nos afeta. Não há uma lei transcendente à vida que ordene nosso ser ou nossa maneira de agir, à qual devemos obedecer. Tudo o que a vida e o acaso exigem de nós é que sejamos fortes, isto é, que saibamos selecionar nossos encontros e produzir, a partir de nós mesmos, os agenciamentos que nos fortaleçam para que sejamos dignos da beleza deste universo, para que possamos jogar com desenvoltura e liberdade e criar novas constelações, novos caleidoscópios, novas diferenças, novos brinquedos.

Trecho extraído da nova edição do livro Saúde, Desejo e Pensamento, de Luiz Fuganti.

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