por Rita Almeida
Pra começo de conversa é necessário dizer que o fanatismo não é uma
espécie de loucura, ele tem uma estrutura própria: é burrice somada à
canalhice. O fanático é burro porque aceita incondicionalmente o que lhe
aparece sem questionar; não opera nele nenhum corte ou atravessamento. É
canalha porque vê, mas não olha; ouve, mas não escuta; encontra e
reconhece, mas não quer saber sobre isso. O fanático é um cínico; não
tem nenhum compromisso com a verdade e não se afeta pelo discurso do
outro. O fundamentalismo que sustenta o fanático é a rejeição da
filosofia e o avesso do diálogo.
O fanático possui uma fragilidade simbólica. Ele está, na maior parte
do tempo, assujeitado a um discurso que não tem compromisso algum com
algo que lhe seja singular, que lhe atravesse, que o faça deslizar de
suas certezas. O fanático possui um discurso desabitado de eu – do eu
inconsciente, dividido – está preso apenas ao campo do imaginário, que é
frágil e, por isso, precisa ser refeito o tempo todo. O eu do fanático
se sustenta por meio de uma imagem que ele cria para si e que precisa
manter incólume. E ele a constrói a partir de um discurso que considera o
“politicamente correto” ou “moralmente correto” e no qual se mantem
preso; discurso fundamentalista por excelência.
Por outro lado, este discurso que o fanático reproduz como sendo seu,
não tem nada que lhe seja singular, trata apenas de uma espécie de fé
ou crença inabalável que ele reproduz sem questionar. Mas, não sejamos
ingênuos, não é apenas o discurso religioso que pode se encaixar nessa
categoria discursiva. Teorias das mais diversas, dietas, gostos
musicais, um time de futebol, uma bandeira política; tudo pode servir
para alimentar o fundamentalismo do fanático. Basta que este faça uso de
tal discurso para obter uma resposta unívoca e definitiva para qualquer
pergunta que faça. Pois, o fanático, não busca um discurso para
transitar no mundo, mas para lhe servir de manual de como agir e se
portar. Na medida em que lhe faltam recursos simbólicos para buscar um
modo próprio de se arranjar no laço social, o fanático precisa seguir
verdades que já estejam dadas, às quais ele precisa apenas se submeter e
obedecer. O que o fanático quer é se tornar o servo ideal de uma
teoria.
Li recentemente o livro: Como curar um fanático? de Amós Oz. Oz parte
do princípio que o fanatismo é uma semente que está em todos nós. É
muito mais velho que todas as ideologias e religiões; um componente
intrínseco à natureza humana. A questão é apenas alimentá-lo ou não, e
isso pode acontecer por várias vias. Todavia, é obvio que não podemos
comparar um vegano fanático com um terrorista fanático. Existem
gradações de mal que cada um desses pode causar, e isso faz toda a
diferença. Mas, o importante é atentarmos para o fato de que o fanatismo
pode brotar a qualquer momento em nós, e é contagioso, exatamente pela
sua simplicidade. Oz supõe que o crescimento do fanatismo pode ter
relação com o fato de que o mundo tenha se tornado demasiadamente
complexo. E quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas
anseiam por respostas simples.
É interessante que o maior problema do fanático seja sua tendência ao
altruísmo, já que ele parece estar mais interessado em você do que nele
próprio. O fanático quer, sobretudo, mudar você porque, afinal, é ele
quem sabe o que é melhor pra você. Como diria Amos Oz: “Ele quer salvar
sua alma, quer te redimir, quer te livrar do pecado, do erro, de fumar,
de sua fé ou de sua falta de fé, quer melhorar seus hábitos alimentares,
ou te curar da bebida ou de sua preferência na hora de votar. O
fanático se importa muito com você, ele está sempre pulando em seu
pescoço porque te ama de verdade, ou então está em sua garganta caso
demonstre ser irrecuperável. E seja qual for o caso, falando
topograficamente, pular em seu pescoço e estar em sua garganta é quase o
mesmo gesto. De um modo ou de outro, o fanático está mais interessado
em você do que nele mesmo, pela muito simples razão de que o fanático
tem muito pouco de “ele mesmo”, ou nenhum “ele mesmo”.”
Mas o que causaria tal insistência de conversão? É que quando um
fanático consegue converter o outro, ele conquista a garantia de que seu
discurso seja validado. Ao enlaçar o outro, o fanático atualiza sua
própria imagem e reforça sua paixão por si. O objetivo é transformar o
outro em si mesmo, assim, apaga-se todas as diferenças e tudo se mantém
igual. De algum modo, o que o fanático deseja é destruir o outro que
insiste em se manter como outro; ou tentando transforma-lo no mesmo ou
apagando-o. O fanático precisa apagar toda a diferença para que seu eu
frágil se reforce entre seus iguais e, assim, sobreviva.
Sobretudo, o fanático é um cínico. Afinal, ele sabe que, ainda que
seu discurso não possua nenhum compromisso com a verdade, este jamais
poderá ser desconstruído ou questionado, afinal, isso significaria sua
própria derrocada. Se o eu singular do fanático é frágil e depende da
teoria fundamental que ele abraça, desmontar tal teoria é fazê-lo
experimentar sua própria morte. É por isso que o fanático não fala, ele
vocifera. Vocifera porque precisa a todo custo sustentar sua teoria,
mesmo que ela seja uma mentira. A outra opção seria sucumbir com ela. Oz
exemplifica: “Conheço antitabagistas que queimariam você vivo por
acender um cigarro perto deles! Conheço vegetarianos que comeriam você
vivo por comer carne! Conheço pacifistas, alguns deles meus colegas no
Movimento Israelense pela Paz, que gostariam de dar um tiro na minha
cabeça só porque eu defendo uma estratégia um pouco diferente de como
chegar à paz com os palestinos.”
Enfim, há fanáticos por todos lados e de todos os tipos e modos.
Concordo com Amos Oz que o maior embate global de nossa época é a luta
universal contra todos os tipos de fanatismos e fundamentalismos, ainda
que seja apenas para minimizar seus danos ou evitar sua propagação. E
alguns antídotos para esta luta são, segundo este autor: o humor, a
capacidade de suportar situações onde não há nenhuma certeza e a
capacidade de desfrutar da diversidade. O humor é aquilo que nos faz rir
de nós mesmos, ou seja, ele relativiza nosso lugar e nossas teorias,
pois nos permite que olhemos para nós do modo como o outro nos vê.
Quanto mais alguém é capaz de rir de si mesmo e de suas teorias, mais
ele está vacinado contra o fanatismo. Outro antídoto é abrir-se para as
incertezas, suportar o que está em aberto, o que não tem resposta.
Viajar para além de si mesmo é também um exercício eficaz contra o
fanatismo. É a capacidade de se imaginar no lugar do outro, mesmo no
momento que acreditamos estar totalmente certos. É se deixar afetar pelo
outro, de algum modo.
Depois de toda esta reflexão, não pude deixar de pensar no momento
político atual do Brasil. De certo modo compreendi porque tem sido tão
difícil sustentar o debate. É perceptível que a grande maioria se
encontra aprisionada em suas certezas e crenças; não importa a verdade,
não importam os fatos, não importa se o outro que está em jogo hoje pode
se tornar o eu em jogo de amanhã... Nada disso importa. O que importa é
que cada um se mantenha nas suas bolhas de certeza, para sustentar a
própria imagem. O que importa é que tal certeza não se abale nunca,
mesmo que eu saiba que estou sustentando uma farsa, já que a outra opção
seria admitir estar errado e, consequentemente, ter que lidar com a
morte daquilo que sou. Tais bolhas de certeza funcionam como as bolhas
das redes sociais, que formamos e reforçamos cada vez que bloqueamos ou
excluímos quem pensa diferente de nós.
Nesse sentido, é fundamental manter o diálogo, o humor e a diferença,
pelo menos para evitar que o fanatismo se propague ainda mais ou nos
contamine. É claro que não é possível transigir com genocidas,
chauvinistas, terroristas e outros tipos, mas não se pode ignora-los ou
se apartar deles, é preciso reconhece-los, confronta-los e combatê-los.
Pois, caso os não fanáticos declinem desta tarefa, estarão apenas
poupando o trabalho dos fanáticos em silenciar o que diverge deles,
reforçar suas bolhas e angariar mais adeptos/servos.
Ao escrever este parágrafo me peguei pensando se eu mesma não estou
aqui a alimentar o germe do fanatismo, me assegurando da certeza de não
ser uma fanática. Mas a dúvida já me deu um consolo, e rir do meu
mal-estar com o parágrafo me aliviou mais um pouco, mas não o
suficiente, confesso.
Por fim, o que sustento é que mantenhamos uma arena de combate e
debate possível. E uma que suporte a ideia de que o laço sempre está
pronto para se desfazer, mas pode ser refeito logo adiante e desfeito
novamente. E é saudável e desejável que seja assim. Um laço não pode
pretender capturar o outro para sempre, porque o outro também quer estar
em outra parte e de outro modo diferente do que eu penso ou quero.
Na fragilidade do laço mora todo mal-estar do mundo, mas também toda a
possibilidade daquilo que no senso comum chamamos amor, que é a
capacidade de enlaçar o outro sem prende-lo, ou seja, suportando a sua
alteridade e mais ainda, dialogando com ela.
Rita Almeida - Psicologa/psicanalista. Doutoranda em educação pela UFJF. Trabalhandora da Rede de Saude Mental do SUS
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