PAULO BRABO, 25 DE JUNHO DE 2015
É o paradoxo das
nossas vidas. Nunca tivemos tanta liberdade para moldar nossas vida do modo
como queremos, mas nunca estivemos sujeitos a tantas pressões nos dizendo o que
é desejável.
David Rowan, The Times, 6 de setembro de 2003
David Rowan, The Times, 6 de setembro de 2003
Parece estar suficientemente demonstrado que
quando o ocidente abandonou a noção (antes bastante popular) de que a ganância
é um vício foi com a ardente aprovação da Reforma Protestante – e provavelmente por direta inspiração dela. O
que ainda não sabemos avaliar são todos os resultados que essa mudança de
paradigma lançou história adentro.
Mesmo antes da era da mecanização, alguns observadores,
avaliando essa formidável transição, entreviram um futuro que por um lado
é o nosso presente, por outro parecia para eles ter pouco de humano. Hoje em
dia discute-se se um mundo que não acredita em Deus irá manter-se abraçado à
ética; naquela época discutia-se se um mundo que acredita na ambição e no lucro
pode alegar estar abraçado a Deus.
Quando a revolução industrial era menos do que uma
promessa e a era da informação menos do que um sonho, esses sujeitos intuíram
que a ganância, alimentada pela tecnologia, poderia se mostrar a chave da
destruição do mundo e da mais fatal cegueira da história da humanidade.
Em seu A Vida de Fausto, de 1791, Friedrich Maximilian Klinger coloca na boca de Satãalgumas
dessas profecias:
Em breve, o
perigoso veneno da sabedoria e da ciência contaminará a todos! Sua fantasia
inflamar-se-á para criar milhares de novas necessidades. Loucura, dúvida e
intranquilidade e novas necessidades se alastrarão, e eu duvido que meu
terrível reino possa acolher a todos que serão contaminados por esse veneno
sedutor.
Este é Novalis (1772-1801), escrevendo mais ou
menos na mesma época, em seu A Cristandade, ou a Europa:
Uma prolongada
associação de homens diminui suas inclinações para a sua fé e para sua
raça, e habitua-os a aplicar seus pensamentos e esforços à tarefa de
adquirir conforto material. As necessidades, bem como as artes de
satisfazê-las, tornam-se mais complexas; o ambicioso requer tanto tempo para
conhecer e ganhar habilidade nessas artes que não tem mais tempo para a silenciosa
reunião de ideias e a atenta consideração do mundo interior. Se um conflito
surge, seu interesse presente lhe parece representar mais; desse modo fenecem
as belas flores de sua juventude, da fé e do amor, dando lugar aos frutos
amargos do conhecimento e da possessão.
Acho especialmente relevante que esses autores
tenham entendido, de seu posto há duzentos anos, de onde não tinham como saber
o que hoje sabemos, que o segredo da vitória final da ganância residiria na manipulação das necessidades.
Novalis enxergou que necessidades mais complexas
requerem mais recursos e mais tempos para serem satisfeitas. O mero tempo
necessário para aprendermos a nos tornar “produtivos” e a nos mantermos
assim pode estar sequestrando partes muito legítimas da existência – porções
e pausas de vida que perdemos inteiramente de vista enquanto corremos atrás
do vento. Antes dos engarrafamentos e dos shopping centers, Novalis
entreviu que a tarefa de nos tornarmos consumidores eficazes pode estar nos
subtraindo o privilégio e a tarefa mais essencial de viver.
Klinger olhou ainda mais longe, e na mesma página
diz duas vezes que a chave da manipulação e da ruína da humanidade
residirá na “criação de necessidades”. Antes da televisão de tela plana e do
iPad, ele entendeu que o homem abraçará os pés do diabo para não ter de
resistir ao apelo de “novas necessidades”.
Essas profecias falam de um momento no futuro em
que os homens finalmente dominariam a arte de transformar o que é
supérfluo em necessidade. Essa hora, naturalmente, já chegou. Mais do que
Novalis jamais poderia sonhar, aprendemos a validar nossa humanidade
através daquilo que consumimos. E, numa vertigem que levaria Klinger à
loucura, a subsistência dos sistemas do mundo absolutamente depende da
criação e da divulgação insaciável de novas necessidades.
Até mais ou menos recentemente, a durabilidade
de um produto era encarada como valor: os produtos eram feitos e comprados para
durar. Esse paradigma, no entanto, não funcionava a serviço de um capitalismo
que depende do consumo sem pausa para sobreviver. As indústrias aprenderam
não apenas a lançar novos produtos (coisa que fizeram desde o começo), mas a
encaixá-los num rigoroso programa de obsolescência programada. Mesmo
quando compradas para durar, as coisas passaram a ser feitas para não durar. Hoje em dia um produto apresenta falhas técnicas
muito antes do que já foi considerado aceitável, e o custo do conserto e da
manutenção se mostra muitas vezes maior do que o custo da aquisição de um
produto novo. O verdadeiramente notável nessa equação é que aprendemos a
deixar de ficar indignados com isso, devidamente aplacados pelas vantagens
anunciadas do novo produto-necessidade.
O último estágio da transição de valor do durável
para o instantâneo ocorreu quando as indústrias deixaram de ocultar o seu
projeto de obsolescência programada e passaram a anunciá-lo como evidência
de compromisso com a inovação. Hoje não há quem compre um equipamento eletrônico
desconhecendo que daqui a um dia ou dois, talvez antes, um equipamento com
mais (ou menos) botões estará ocupando o mesmo lugar na estante. Não há quem
compre um iPhone n sem saber que este ano ainda deve sair on+1.
A perspectiva da obsolescência deixou de ser um problema e passou a ser um
componente legítimo do produto, um de seus mais irresistíveis atrativos.
E, como diz a piada, com esses dez por cento nós
vamos vivendo. Os profetascontinuam falando e
sendo solenemente ignorados, porque ouvi-los seria morder a mão que nos
alimenta – ou mais propriamente, seria deixar de morder a mão que estamos
consumindo: a nossa própria. Ivan Illich explica além da dúvida que
nos tornamos tão habituados às soluções da tecnologia que ficamos cegos
ao fato de que estamos sendo aprisionados por elas. As soluções que
deveriam tornar a vida mais fácil, bem como a obediente satisfação das necessidades
novas e complexas que nos vende o sistema, pouco fizeram além de criar novos
problemas, e crônicos. Entre eles estão as chamadas “doenças da opulência”,
invenções do nosso sucesso em canalizar o nosso modo de vida de modo a
perseguir a prosperidade – coisas como obesidade, depressão, ansiedade,
hipertensão e diabetes. Essas novas doenças aplacamos com novos remédios, é
claro, porque seria pedir demais que nos rebaixássemos a mudar de vida. Para
que o sistema continue rodando, nada nem ninguém – nem nossa própria qualidade
de vida nem o esgotamento dos recursos do mundo – deve ser considerado
motivo legítimo para uma reavaliação de rumo.
Este relato faz
parte do meu livro As divinas gerações. Desnecessário lembrar
que você quer mesmo é comprar o livro impresso ou a versão digital.
Publicado originalmente em 17 de maio de 2011
Leia também:
A respeito do colapso da civilização, aquele iminente
O comprimento das cadeias
O apocalipse de Debord
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Fonte: http://www.baciadasalmas.com/
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