Paulo Brabo, 6 de julho de 2014
A origem do fundamentalismo de mercado, sua base intelectual, é a noção de que não haverá jamais consequências não calculadas para as coisas porque, como em tudo se coloca um preço, você crê que está pagando por todas as consequências das suas ações.
Sir Partha Dasgupta, How To Price a Forest and Other Economics Problems
A singularidade do modo de vida que testemunhei em Urubici no final da década de 1970 pode ser articulada de diversas formas. A comparação com Shangri-Lá de Horizonte Perdido pode ser inevitável, porque um observador entende de imediato que o caráter excepcional dos dois lugares – o vale da ficção e o da minha experiência – deve-se, em boa medida, ao seu relativo isolamento.
Minha primeira e mais duradoura impressão sobre Urubici talvez tenha sido essa, a de que o lugar tinha sido poupado de alguma coisa que havia muito claramente arruinado outros lugares; uma coisa que arruinaria mesmo Urubici se encontrasse ocasião de chegar até ali.
Um dos modos menos sentimentalistas de articular a diferença é lembrar que a Urubici daquele tempo tinha sido poupada de um determinado modelo econômico – um determinado modo de ver e de perfazer o trajeto entre a produção e o consumo.
O Brasil da década de 1970 já operava com uma malha bastante complexa de produção e de distribuição. Em contraste, as cadeias de produção e de distribuição em Urubici eram relativamente curtas.
Uma cadeia curta é quando você come o frango que criou, ou que comprou do seu vizinho. Uma cadeia longa é quando você come o frango que nasceu num criadouro, foi engordado numa fazenda industrial, foi processado numa indústria e ficou armazenado em pelo menos um centro de distribuição antes de ser posto à venda no seu supermercado – sendo que cada uma dessas etapas ocorre, com toda a probabilidade, em lugares relativamente distantes de você e uns dos outros.
Uma cadeia admissivelmente curta é quando um cidadão de Urubici veste uma camiseta que foi produzida em Blumenau. Uma cadeia longa é quando a camiseta que você veste tem uma etiqueta em inglês e foi produzida no continente asiático.
O capitalismo, especialmente em sua manifestação tecno-industrial, tende a produzir cadeias de produção e de distribuição cada vez mais longas e complexas. Não é que o capitalismo dê por princípio preferência a cadeias longas; são as ênfases capitalistas em produtividade, especialização e maximização dos lucros que acabam estimulando o alongamento das cadeias.
Sem nos darmos conta, patrocinamos cadeias de produção e de distribuição que têm cada vez mais etapas, mais ramificações, mais intermediários e mais dependências. Nos casos de produtos de alta tecnologia, essas cadeias acabam se desdobrando em sistemas de uma complexidade bestial.
Um dispositivo que teve o seu design estabelecido nos Estados Unidos têm os seus componentes produzidos em vinte países e três continentes. Essa multidão de componentes multinacionais descobre modo de se reunir magicamente numa única fábrica da China, nas mãos de um único e anônimo ex-camponês, antes de atravessar montanhas e mares e encontrar o caminho de uma loja de shopping em São Paulo ou de um supermercado de bairro em Campina Grande – tudo para que você tenha como jogar Candy Crush na sua próxima ida ao banheiro.
As penalizações
À primeira vista as longas cadeias parecem não fazer outra coisa que premiar o consumidor, porque efetuam a sua mágica de modo a pulverizar custos que a economia local não poderia ou não se disporia a cobrir. O resultado são preços menores para produtos que viajaram mais. Se quiser (e quem poderia resistir?) você pode pagar menos por um manteiga francesa, um peixe defumado canadense ou uma camiseta chinesa do que por produtos similares que foram manufaturados a metros de você.
Naturalmente esses milagres têm os seus custos, mas o sistema tem mecanismos – a própria extensão das cadeias, a atração dos preços mais baixos – que trabalham para mantê-los ocultos.
Para entender os custos locais desse modelo econômico é preciso a dádiva de uma perspectiva que é cada vez mais rara. A mim essa perspectiva foi oferecida por Urubici naquelasminhas primeiras viagens a Santa Catarina.
Grande parte do que achei de admirável no modo de vida do vale só era possível porque (e só permaneceu sendo possível enquanto) sua sociedade não havia sido ainda seduzida e penalizada pelo sistema de cadeias longas.
Permita-me examinar alguns aspectos dessas penalizações.
► As longas cadeias minam a independência e a autonomia
Os urubicienses que conheci no fim da década de 1970 tinham um senso de autonomia e de suficiência que chegava a intimidar. Não me lembro de ter tido medo de uma pessoa boa,um medo que era também uma espécie de admiração, antes de conhecer aqueles homens e mulheres. Aquela era gente livre, como gente idealmente deveria ser – e como eu não tinha visto ninguém na cidade conseguindo permanecer.
Meus amigos de Urubici tinham motivo para parecer livres e autônomos: de fato eram. As cadeias curtas de produção e de distribuição são brasões de autonomia da sociedade local, e nisso capacitam os seus habitantes em modos numerosos demais para contar.
São também parte essencial daquilo que se convencionou chamar de sustentabilidade – o projeto de manter vivo e viável um determinado modo de vida.
Seduzida pela aparente conveniência das cadeias longas, a sociedade perde de vista o que deveria parecer óbvio: que as cadeias longas tornam inviáveis as cadeias locais.
O produtor local que perde seus compradores perde não só o seu sustento: perde também a oportunidade de expor ao mundo, a si mesmo e a seus descendentes a dignidade do seu modo de vida.
► As longas cadeias inibem a cultura local e tendem a riscá-la do mapa
Uma cultura local é um ecossistema de modos de fazer, um conjunto de feições desenhado pela história e pela geografia. Tradições tornam-se tradições porque uma sociedade decide coletivamente, no espaço de gerações, que um determinado conjunto de modos de fazer serve mais do que qualquer outra alternativa para representá-la diante de si mesma e distingui-la diante das outras.
Nenhuma sociedade da história existiu completamente isolada da influência das outras, mas antes do nosso tempo nenhuma sociedade teve que competir com uma cultura global.
A competição das longas cadeias de produção e de distribuição inviabiliza a cultura local porque estabelece como inviável o estrato mais fundamental dos seus modos de fazer, aquele da subsistência.
Quando no mercado local introduzem-se produtos subsidiados pelo comprimento das suas cadeias, o pequeno produtor (ou o pequeno artesão) acaba entendendo que não pode continuar sendo pequeno e produtor. Ele (ou pelo menos seus filhos) serão compelidos a abandonar os antigos modos de fazer. Via de regra darão ouvidos ao apelo universal paraentrar no mercado, num cenário urbano ou pelo menos numa fábrica: querendo dizer, passarão a vender a sua mão de obra em vez da sua produção.
Serão empregados.
É uma transição tão radical que acaba dizimando no seu lastro todas as tradições e toda a cultura associada ao modo de vida anterior.
► As longas cadeias ocultam os custos locais das longas cadeias
Quando compra um artigo de 1,99 você via de regra não o faz por um ódio deliberado à economia local. Na verdade, determinados preços são tão excepcionais que geram a impressão de que ninguém está sendo prejudicado por eles; parecem existir literalmente fora da competição.
O fato é que nada no planeta custa 1,99, a não ser que alguém fora do seu campo de visão esteja pagando a diferença. Essa transferência de custos é o mecanismo mais essencial do sucesso das longas cadeias (ver abaixo), mas não é o único.
Quando a longa cadeia lhe oferece um produto a um preço muito inferior ao de um similar produzido localmente, você se sente tentado a pensar que apenas os de fora estão subsidiando aquele preço.
A matemática, naturalmente, é outra. Num sentido importante, os produtos das longas cadeias são baratos porque não estão dando nada à economia local, existindo à parte e sem qualquer compromisso com ela. Via de regra, o custo das longas cadeias para a economia local é a economia local.
► As longas cadeias ocultam os custos globais das longas cadeias
Quando a produção é local, entra em ação um mecanismo natural de contenção e de controle. Como a manufatura e o consumo acontecem dentro das suas fronteiras, a comunidade pode avaliar diretamente até que ponto os recursos locais estão sendo abusados, até que ponto a paisagem local está sendo descaracterizada e até que ponto os trabalhadores locais estão sendo explorados no processo.
As cadeias longas de produção terceirizam essas responsabilidades e ocultam cada um desses custos. Você compra o produto final, mas não tem como retraçar a partir dele as comunidades que foram obliteradas pela nova hidrelétrica, as casas centenárias que foram aplainadas em estacionamentos, as espécies que foram desalojadas ou extintas pelo avanço dos parques industriais, os retirantes que foram arrebanhados de seu modo de vida original a uma linha de produção confinada e insalubre.
Terceirizar responsabilidades raramente é uma boa ideia. Via de regra a extensão dos danos só aflora quando é tarde demais para corrigi-los – ocasião em que todos os envolvidos poderão afirmar, sem mentir muito, que não tinham ideia clara do que estava acontecendo.
Um exemplo do modo como as longas cadeias de produção e de distribuição ocultam os custos globais que as sustentam é o caso da carne bovina.
Não é sem razão que na maior parte da história, em todas as geografias, as pessoas comiam carne apenas ocasionalmente, especialmente fresca. Criar um animal de corte requer consideravelmente mais recursos do que outras alternativas alimentares. Com os 15.500 litros de água que são necessários para produzir um quilo de carne bovina se produzem 12 quilos de trigo ou 118 quilos de cenoura.
O capitalismo se faz de louco e opera como se comer carne fosse algo natural como respirar ou beber água, mas a natureza opera de modo muito diverso. O que o sistema esconde é que é preciso queimar uma quantidade enorme de recursos para sustentar farsa tão escabrosa.
Se é tão caro produzir carne, de onde um cara nada rico como você tira recursos para comê-la com tanta frequência? O seu bife está sendo subsidiado, em parte pelo governo, em parte pelo planeta.
As longas cadeias mantém fora do seu campo de visão o acre de floresta amazônica que éderrubado por segundo para dar lugar à criação de gado ou à produção de grãos destinados a alimentar essa indústria. Um quilo de alcatra custa muito mais do que você poderia comprar, mas a extinção irreversível das espécies e a obliteração sistemática do pulmão do mundo têm feito a cortesia de pagar a diferença.
Grande parte do planeta está passando fome, mas para a sua conveniência as longas cadeias ocultam que os recursos que subsidiaram o seu churrasco poderiam ter sido empregados para saciar uma pequena multidão. Você come o seu McLanche feliz sem ter de pesar que mais de 40% da produção global de soja, trigo, centeio, aveia e milho são usados para alimentar não seres humanos, mas gado de corte.
► As longas cadeias ocultam os custos humanos das longas cadeias
Como estamos falando de sistemas complexos, com ramificações em diversos continentes, países e fornecedores, é por definição impossível para o consumidor acompanhar aseventuais injustiças e atrocidades sociais patrocinadas pelas longas cadeias do capitalismo ao longo do trajeto.
Você compra o seu smartfone, mas não precisa ficar sabendo que as condições de trabalho em que ele foi montado numa fábrica chinesa são tão desumanas que as janelas são gradeadas e os prédios providos de redes de segurança, na tentativa de conter o avanço dos suicídios.
Você não precisa testemunhar o drama das famílias desalojadas, das comunidades e culturas riscadas do mapa, de gente em nada diferente de você roubada da sua dignidade.
Diminuir os custos e maximizar os lucros é o mantra do capital. Os batedores do capitalismo vivem sondando o planeta em busca da mão de obra mais barata disponível, de modo a explorá-la nas suas longas cadeias.
Até recentemente, por exemplo, a China era o grande centro de manufatura das roupas consumidas no ocidente. Esse eixo vem se transferindo para Bangladesh, onde as grifes encontraram mão de obra disposta a trabalhar por menos, com menos garantias e emcondições de trabalho mais insalubres.
As grandes corporações não mexem nesse tabuleiro para perder. Elas não repassam para você um desconto que já não tenha sido pago por outro ser humano. A regra geral é esta: quanto menor o preço final de um produto de longa cadeia, mais brutais você pode concluir que foram as condições da sua manufatura.
► As longas cadeias separam o consumidor do custo verdadeiro do que está consumindo
“O capitalismo predatório”, diz-me o ativista Robert David Steele, “baseia-se na privatização do lucro e na externalização dos custos. Ele é uma extensão do confinamento dos recursos comuns, das clausuras, e é acompanhado pela criminalização dos direitos e costumes comuns que valiam anteriormente”.
O que Steele chama de externalização dos custos é a própria essência da longa cadeia de produção e distribuição. O capitalismo predatório anda em derredor buscando recursos naturais e mão de obra baratos que possa tragar, não importa em que lugar do mundo.
Uma das consequências desse modo operação é que ele aliena a sociedade local do verdadeiro custo dos produtos que consome. Tendo sido externalizados, os custos perderam toda relação com o preço final, e fica muito difícil estimá-los. Steele:
Precisamos é de um sistema que preste contas integralmente de todos os custos. Por exemplo, meu colega J Z Liszkiewicz calculou que uma camiseta branca de algodão encerra cerca de 570 galões de água e entre 11 e 29 galões de combustível, bem como um bom número de emissões e toxinas, incluindo pesticidas, vapores de diesel, metais pesados e outros compostos voláteis – e comumente envolve ainda trabalho infantil. Pesar esses custos e seu impacto social, humano e ambiental tem implicações para o modo como devemos organizar a produção e o consumo que diferem em muito do presente capitalismo predatório.
► As longas cadeias roubam a perspectiva – do que está acontecendo e do que pode ser feito
Como resultado do mencionado acima, todas as partes envolvidas são roubadas de perspectiva: uma visão clara e global das consequências do que estão fazendo.
As sociedades locais por certo não têm essa perspectiva. O sistema colocou-as num ponto cego, e espera-se que se beneficiem passivamente do sistema de longas cadeias sem ter que entender o que envolvem. A única atitude não-passiva da sociedade local deve ser sua contribuição ativa para a manutenção de outras longas cadeias – contribuição de cujos custos as demais sociedades permanecerão ignorantes, e assim por diante.
Os governos e corporações por certo não têm essa perspectiva. Sua eficácia como instituições depende de ignorarem e passarem por cima dos preços pagos pelas sociedades locais para o avanço de sua “causa maior”. Quando toda a Amazônia for um estacionamento estarão ainda recusando-se a admitir que alguma coisa foi perdida.
Num sistema em que ninguém sabe exatamente o que está acontecendo, em que ninguém sabe o verdadeiro custo de nada (quem pode verdadeiramente estimar o custo de um acre de mata derrubado por segundo?), ninguém se sente responsável e ninguém será chamado a prestar contas, a não ser que todos sejam.
Sistemas complexos sem espaço para responsabilidade e prestação de contas são um convite ao desastre. O desastre não é conhecido por recusar convites dessa natureza.
► As longas cadeias se tornam cadeias: o capitalismo é um sistema do qual ninguém consegue sair
Na Urubici do final da década de 1970, com seu regime de cadeias curtas, meus amigos conheciam uma liberdade que nos nossos dias tornou-se praticamente impossível de exercer.
Aqueles caras extraíam o seu sustento da terra (e pare um minuto para sentir quão séculoXIII soa essa ideia lida na telinha do seu smartfone). Não arrendavam a sua força de trabalho para terceiros, mas empregavam-na para si mesmos. Não eram de modo algum socialistas, mas subsistiam à parte do mercado.
E, das intolerâncias do fundamentalismo de mercado, esta é a primeira: o capitalismo não tolera que alguma coisa exista à parte do mercado. À parte do mercado ninguém deve terpermissão para sentir que existe.
O capitalismo corporatista apropriou-se e reorientou todos os aspectos da cultura de modo a reforçar esse único dogma. É por isso que os filhos de meus amigos de Urubici trocaram aquele modo de vida por modos urbanos em outras cidades: para entrarem no mercado – porque quem não está no mercado não deve sentir que existe. É por isso que mandamos as crianças para a escola; não para que aprendam alguma coisa, mas para que aprendam a entrar no mercado – porque quem não está no mercado não deve sentir que existe. É por isso que as pessoas escrevem livros e pintam quadros, não para dizer alguma coisa ou para a glória da aventura humana, mas para vendê-los no mercado – porque quem não está no mercado não deve sentir que existe.
É por isso que neste mundo quem acontece de estar desempregado é compelido a sentir-se, de modo muito real, menos do que gente. A própria palavra faz questão de demarcá-lo. No regime capitalista um desempregado (que é, em termos estritos, uma pessoa livre) deve sentir que não tem emprego: não tem utilidade, não tem dignidade, não tem lugar, não tem valor.
Se existe ideologia mais perversa, ou sistema mais eficiente de manipulação, esses não acabarão substituindo o capitalismo. O capitalismo é que se mostrará pronto a incorporá-los.
ESTE DOCUMENTO FAZ PARTE DA SÉRIE
- O apocalipse de Debord
- Espaço e história
- Horizonte perdido
- O comprimento das cadeias
Nenhum comentário:
Postar um comentário