"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

domingo, 2 de novembro de 2014

As persistentes persuasões do desenvolvimento

O QUE O PT E O CAPITALISMO TÊM EM COMUM? A CRENÇA DE QUE DE UMA PRODUÇÃO CRESCENTE BROTARÁ NATURALMENTE A JUSTIÇA.

Foi precisamente essa perda de contato com o passado, nosso desenraizamento, que deu origem aos “descontentamentos” da civilização, a uma pressa e uma agitação tão grandes que vivemos mais no futuro com suas quiméricas promessas do que no presente, cujo passo acelerado nosso pano de fundo evolucionário não aprendeu ainda acompanhar. Precipitamo-nos impetuosamente novidade adentro, guiados por um senso cada vez mais acentuado de insuficiência, de insatisfação e de inquietação. Não vivemos mais daquilo que temos, vivemos de promessas; deixamos de viver à luz do presente e passamos a viver nas trevas de um futuro que, esperamos, trará o aguardado amanhecer. Recusamo-nos a reconhecer que toda coisa melhor é comprada ao preço de uma coisa pior.
Carl Jung em Memories, Dreams and Reflections (1957)
 
Não sou de direita, e a esquerda dos meus sonhos ainda está para nascer. Neste momento da história, e para meu cons­tran­gi­mento, nenhum país exem­pli­fica melhor o que há de errado com o capi­ta­lismo… do que o Brasil governado pela esquerda petista.
Sob a guarda do PT, em dez anos de governo de esquerda, enquanto o mundo resvalava (e continua res­va­lando) num lodaçal econômico sem pers­pec­tiva de escape, o Brasil expe­ri­men­tou (e continua expe­ri­men­tando) um cres­ci­mento tão ful­gu­rante e con­sis­tente que despertou per­ple­xi­da­des e invejas dentro e fora das fron­tei­ras nacionais.
Como todo mundo, minha tendência é pensar na esquerda como um movimento político concebido com a fina­li­dade de contrapor e anular os excessos do capi­ta­lismo. O soci­a­lismo, no mundo dos meus sonhos, deveria ser capaz de consertar tudo que é paten­te­mente injusto, insensato e irres­pon­sá­vel no libe­ra­lismo econômico: em primeiro lugar, é claro, as devas­ta­do­ras injus­ti­ças sociais patro­ci­na­das pelo capi­ta­lismo, mas não só isso. Deveria ter também como pri­o­ri­dade rejeitar os dogmas ances­trais que repre­sen­tam a base e o com­bus­tí­vel do capi­ta­lismo, espe­ci­al­mente a fé pública e ina­ba­lá­vel na trindade suprema do lucro, do consumo e da pro­du­ti­vi­dade – espe­ci­al­mente porque é esse dou­tri­na­mento que acaba pro­du­zindo as injus­ti­ças sociais em primeiro lugar. A situação política ideal, para mim, é aquela em que a injustiça social é anulada porque todos abandonam a obsessão circular e ilusória com o dinheiro, com o consumo e com a produção.
Cara, que idiota que sou. O governo do PT bastou para demons­trar que a esquerda petista é para todos os efeitos a minha direita. Não creio que os petistas sejam mais deso­nes­tos do que o político bra­si­leiro mediano, mas por certo não são os refor­ma­do­res da realidade com que cheguei por um momento a sonhar.
Ao contrário do que agouravam muitos de seus detra­to­res, o governo do PT permanece moldando o país numa lubri­fi­cada e impla­cá­vel potência econômica – um da meia dúzia de lugares do mundo em que dizer inves­ti­mento é quase o mesmo que dizer retorno. É pelo menos em parte graças à esquerda petista que somos final­mente um grande sucesso e a inveja dos povos: o gigante acordou.
Natu­ral­mente, o PT faz avançar esse projeto com mais res­pon­sa­bi­li­dade social do que os governos ante­ri­o­res, mesmo porque era impos­sí­vel agir com irres­pon­sa­bi­li­dade maior. As reformas sociais colocadas em andamento pelo PT são a meu ver muito reais e muito neces­sá­rias; eram urgentes décadas antes de serem colocadas em prática. Porém, ao mesmo tempo, não há como não enxergar na política econômica petista uma indis­far­çada inveja do pênis capitalista.
De modo menos sutil (e, segundo alguns indi­ca­do­res, com eficácia maior) do que os governos de direita que o pre­ce­de­ram, o governo petista permanece obcecado em aumentar o escopo, a efi­ci­ên­cia e o impacto da produção nacional. O PT quis demons­trar de modo espe­ta­cu­lar que a sua estirpe de esquerda é eco­no­mi­ca­mente viável, que produz e dá lucro – e no processo acabou endos­sando espe­ta­cu­lar­mente o artigo maior da confissão de fé capi­ta­lista, de que é o lucro (e não, digamos, uma maior equidade na dis­tri­bui­ção de renda) a medida pela qual se deve pesar o sucesso de um país, de um governo ou de qualquer empreendimento.
Para o PT, a situação política ideal é aquela em que a produção reine suprema e desim­pe­dida, desde que livre do embaraço da desi­gual­dade social. Uma vez que se garanta um patamar mínimo de justiça social, a ênfase deve ser voltada para a produção, tomando-​​se as devidas pro­vi­dên­cias para que não pare de crescer.
É evidente que há maior mérito em entro­ni­zar a produção acom­pa­nhada da equidade social, como procura fazer o PT, do que, como faz o libe­ra­lismo econômico, deixar que o culto à produção e ao capital esmague todo traço de justiça. Porém a esta altura já deve ter ficado claro que o pres­su­posto econômico mais fun­da­men­tal do PT é idêntico àquele do capi­ta­lismo: a noção de que a obsessão com a produção e com a pro­du­ti­vi­dade não é incom­pa­tí­vel com a justiça social. Na verdade, tanto o PT quanto o capi­ta­lismo creem que a produção é efe­ti­va­mente o caminho para a justiça. Nos dois credos, o mundo só per­ma­ne­cerá viável enquanto as pessoas pro­du­zi­rem (isto é, con­su­mi­rem) cada vez mais e de modo mais eficiente.
Para a esquerda da qual estou falando, o cres­ci­mento econômico é uma missão tão sagrada quanto é para o neo­li­be­ra­lismo. Uma vez definido como missão, tudo que se coloca no caminho do aumento da produção pode ser muito lite­ral­mente posto abaixo. Coisas como florestas, leis ambi­en­tais, tribos indígenas e senso de proporção. Ou seja, der­ru­ba­mos coisas que tem um preço, mas com a con­ve­ni­ên­cia de que são as próximas gerações que terão que pagar.
Não é, portanto, acurado viver dizendo – como vejo que estamos habi­tu­a­dos a fazer, com um definido ar de supe­ri­o­ri­dade moral – que, ao contrário de nós, países como Espanha, Portugal e Itália estão “vivendo uma grande crise”. Eles estão vivendo o futuro, e nós estamos vivendo como se não houvesse amanhã. Eles são países maduros enfren­tado os limites e os desafios da matu­ri­dade, e nós somos ado­les­cen­tes mimados gastando uma fortuna que não é nossa. Que fique então claro: se estamos no Brasil expe­ri­men­tando um boom econômico não é porque somos por natureza ou por upgrade mais com­pe­ti­ti­vos, criativos e com­pe­ten­tes do que espanhóis ou italianos: é porque, ao contrário desses caras, temos um país inteiro para queimar.
E, sem sombra de dúvida, o estamos queimando.
A esta altura já será lugar-​​comum (isto é, uma ideia de que todos somos culpados) dizer que, des­co­berto o Brasil, os por­tu­gue­ses “levaram o nosso ouro, mataram os nossos índios, der­ru­ba­ram as nossas matas” e só se dobraram a nos conceder a inde­pen­dên­cia quando não havia mais riqueza visível ou viável para raspar.
Que levaram muito ouro e diamantes, os quais hoje definem sabe-​​se lá qual des­con­cer­tante obra de arte europeia, não se discute. Mas também é indis­cu­tí­vel que na inte­gri­dade das nossas matas os colo­ni­za­do­res europeus deixaram pouco mais do que um arranhão. Na verdade, tivessem con­ti­nu­ado ao longo dos séculos a explorar as nossas florestas naquele ritmo original, teríamos (na faixa litorânea que em termos popu­la­ci­o­nais repre­senta o grosso do Brasil) ainda muita natureza intocada para nos definir e abraçar. Dizer “mataram os nossos índios” é quan­ti­ta­ti­va­mente mais acurado, porém, do mesmo modo que derrubar as matas, é um serviço que deixaram incon­cluso e nos ocupamos até hoje em tentar completar.
É parte essencial do lugar-​​comum dizer que, ao contrário do que fizeram os ingleses na América do Norte, os por­tu­gue­ses foram entre nós mais explo­ra­do­res do que colo­ni­za­do­res. Senhores, bom dia: pode­ría­mos até dizer uma coisa dessas, se não esti­vés­se­mos explo­rando o Brasil como os velhos por­tu­gue­ses jamais sonharam fazer.
Pelas esti­ma­ti­vas mais otimistas, da Mata Atlântica – que bordava a curva exten­sís­sima do nosso litoral, como nenhuma outra mata em nenhum outro con­ti­nente do mundo ousou fazer – resta 10% da cobertura original (em deter­mi­na­das regiões, menos de 3%). Porém a cons­ta­ta­ção ver­da­dei­ra­mente des­con­cer­tante é que pelo menos metade desse estrago aconteceu não sob a guarda dos colo­ni­za­do­res europeus, mas em quatro ou cinco décadas do século XX. Ou seja, a beleza singular e irre­cu­pe­rá­vel que sobre­vi­veu a todas as ganâncias ao longo de mais de qua­tro­cen­tos anos, nós con­se­gui­mos dizimar em quarenta.
Na Amazônia e o pantanal mato-​​grossense, des­ne­ces­sá­rio lembrar, essa herança de desolação permanece muito viva no momento em que escrevo. E, daqui de casa mesmo, enxergo a Mata Atlântica do leste para­na­ense (uma das mais pre­ser­va­das do Brasil) sendo dia após dia encur­ra­lada por pedreiras, indús­trias e conjuntos habi­ta­ci­o­nais. E como eu gostaria que esse “dia após dia” fosse apenas retórico. O meu tes­te­mu­nho é este: em seis meses brota uma indústria numa área que a floresta demoraria 100 anos para ocupar – uma área que, para todos os efeitos, nunca voltará a pertencer à natureza da qual a tomamos.
De onde, meu Deus, surgiu essa ideia de que é tudo bem consumir o país inteiro em chaminés, de que é tudo bem apagar florestas em fábricas, riachos em esta­ci­o­na­men­tos, pantanais em pastos, cascatas em represas e pradarias em campos de soja – isso tudo num ritmo de tsunami, que as mais dili­gen­tes atu­a­li­za­ções do Google Earth não conseguem acompanhar?
Essa pergunta, infe­liz­mente, é fácil de responder. Achamos tudo isso mais ou menos normal porque fomos devi­da­mente pro­gra­ma­dos pela doutrina do desen­vol­vi­men­tismo – a con­ve­ni­ente ideia de que todos os países admi­rá­veis são iguais: que são ricos, no sentido que gastam sel­va­ge­mente todos os seus recursos no ralo da pro­du­ti­vi­dade. Esse dou­tri­na­mento nos faz fechar os olhos a todos os custos pessoais, sociais e ambi­en­tais envol­vi­dos na expansão indus­trial e agrícola, porque cremos que há virtude inerente em ver “o país crescer”. Essa resig­na­ção está mesmo gravada em palavra de ordem na nossa bandeira.
Meu amigo sub­ver­sivo e insu­por­tá­vel Cláudio Oliver gosta de dizer que “desen­vol­vi­mento”, como o enten­de­mos hoje, é um dos únicos conceitos que tem data precisa de nas­ci­mento. A ideia veio ao mundo por ocasião do discurso de posse do segundo mandato do pre­si­dente norte-​​americano Harry Truman, em 20 de janeiro de 1949. Foi naquele discurso que Truman explicou pela primeira vez que a maior parte do planeta era composta por “áreas sub­de­sen­vol­vi­das”. Dizendo assim, o pre­si­dente deixava ime­di­a­ta­mente claro que todos os países sensatos do mundo deveriam perseguir o mesmo alvo: o do desen­vol­vi­mento. Ao mesmo tempo, ele não deixou dúvidas quanto ao que entendia com a palavra.
“Todos os países, incluindo o nosso,” explicou Truman, “irão beneficiar-​​se gran­de­mente de um uso mais eficaz dos recursos humanos e naturais do planeta. A expe­ri­ên­cia demonstra que o nosso comércio com outros países se expande na medida em que esses países progridem indus­tri­al­mente e eco­no­mi­ca­mente”. Mag­na­ni­ma­mente, tendo em vista essa parceria com­pen­sa­dora para todas as nações, Truman esboçou ali mesmo um programa de assis­tên­cia destinado a “atenuar o sofri­mento desses povos através de ati­vi­da­des indus­tri­ais e de um padrão de vida mais elevado”. Ficava inau­gu­rada o dogma, em grande parte não ques­ti­o­nado mesmo entre gente pensante, da cura das nações através da indústria. Porque, afinal de contas, “uma maior produção é a chave para a pros­pe­ri­dade e para a paz”.
Metade dos países do mundo, mesmo aqueles mais antigos e vene­rá­veis, acordou no dia seguinte debaixo de um novo estigma e de uma ines­pe­rada ina­de­qua­ção, a do sub­de­sen­vol­vi­mento. Wolfgang Sachs:
“O imperativo de desenvolvimento de Truman queria dizer que as sociedades do terceiro mundo deixavam de ser vistas como possibilidades únicas, vivas e diversificadas de arranjos humanos, e passavam a ser encaixadas numa única ‘trilha de progresso’, sendo julgadas mais ou menos avançadas a partir do critério das nações industriais do ocidente.”
E esses critérios, como não ignoramos eu e você e como não ignora a esquerda petista, são indus­tri­a­lismo e mate­ri­a­lismo. O mundo de infinitos destinos, vari­e­da­des e matizes foi reduzido ofi­ci­al­mente ao mercado. Ilu­mi­na­dos retro­a­ti­va­mente por vinte minutos de Truman, enten­de­mos ainda hoje que a mais elevada aspiração para uma nação é chegar a ser os Estados Unidos.
A maldição da abun­dân­cia está sobre nós: mesmo quando um governo bra­si­leiro rouba muito (se você está entre os que acreditam que o PT rouba mais do que os outros) restam em cir­cu­la­ção tantos recursos dis­po­ní­veis que permanece impos­sí­vel domar o frenesi do nosso cres­ci­mento. Este é um dos motivos pelos quais não estou inte­res­sado em comparar o desem­pe­nho de Fernando Henrique ao dos petistas que o sucederam. A fila já andou e oPT deixou de ser inte­res­sante ou relevante; o que quero é gente que entenda que conter o cres­ci­mento não equivale a perder em justiça, mas pre­ci­sa­mente o contrário.
O Brasil precisa ser ainda colo­ni­zado, e restam entre nós pouquís­si­mos índios e europeus que nos ensinem a viver.

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