Augusto de Franco
São Paulo, final do inverno de 2012
Sumário
APRESENTAÇÃO | De repente você vê a Matrix
INTRODUÇÃO | A Matrix existe?
.
PARTE 1 | Como a Matrix é carregada em você
Na família
Na escola
Na igreja
Nas organizações sociais e políticas
No quartel
Na universidade
No trabalho
PARTE 2 | É possível sair da Matrix?
Para sair da Matrix
Tornar-se uma pessoa comum
NOTAS E REFERÊNCIAS
APRESENTAÇÃO | DE REPENTE VOCÊ VÊ A MATRIX
DE REPENTE UMA VENDA CAI DOS SEUS OLHOS e você vê: A Matrix. E você a vê
em todo lugar: em casa, na escola, na igreja, na empresa, no comércio, em uma
partida de futebol, no trânsito, nos locais de atendimento público, nas mídias
sociais...
Para ver a Matrix basta parar um instante e observar o comportamento das
pessoas privadas. Quer um exemplo? Observe as filas dos bancos. Quando aquele
paciente correntista chega à boca do caixa, depois de esperar uma eternidade,
ele vai demorar tanto ou mais do que os que estavam à sua frente. É como se
dissesse: “– Agora chegou a minha vez de fazer o que eu quiser, então vou
conversar bastante com o funcionário, vou me informar sobre tudo, bater aquele
papo, aproveitar para realizar várias operações... Os outros que esperem (como
eu esperei). Porque agora chegou a minha vez”. Esse é um comportamento típico da pessoa privada (não-comum). Mas é
incrível como as pessoas que reproduzem tal comportamento não se dão conta.
Quer outro exemplo? Observe com atenção o seu mural no Facebook ou a sua
timeline no Twitter. Você verá multidões de amigos ou seguidores falando só do
bem, do belo, do verdadeiro. Você verá pessoas escrevendo sobre ética, valores,
consciência, transformação da sociedade... Verá pessoas postando fotos de
gatinhos meigos, cachorros com lacinhos, crianças fofinhas com aqueles sorrisos
lindos, paisagens fantásticas... Essas pessoas acham (ou, às vezes, nem acham
porque estão agindo inconscientemente) que, assim, estariam se redimindo de
algum pecado (e se livrando da culpa por não ser boas o bastante). Imaginam (ou
até não imaginam, mas agem como se imaginassem) que construindo umapersona (pública) identificada com o bem, o belo e o verdadeiro, estariam se
aperfeiçoando (já que avaliam que não são boas o bastante), consertando algum
defeito que supostamente teriam trazido: de onde? Ora, elas não sabem e o fato
de não-saberem, mas atuarem (num sentido
psicanalítico do termo) desse modo, explica tudo (conquanto, para elas mesmas,
não explique nada de vez que essas pessoas não estão buscando explicações para
o que é como deveria ser).
O mais interessante que você verá nas mídias sociais são as multidões de
pessoas comemorando as sextas-feiras! E outras multidões curtindo e retuitando
essas manifestações de escravos. Automaticamente. Mas do quê mesmo elas querem
escapar nos finais de semana? Se você quiser saber, entre em uma organização
hierárquica. Qualquer uma. E observe como as pessoas se relacionam nesses
ambientes estranhos, como se não fossem elas mesmas... Sim, são autômatos.
Durante várias décadas fiquei observando esse comportamento de rebanho.
Imaginando, sem saber explicar direito, que a hierarquia introduz deformações
no campo social capazes de induzir as pessoas a replicar certos comportamentos.
Comecei então a fazer explorações no espaço-tempo dos fluxos, para
tentar captar a estrutura e a dinâmica que estariam por trás dessa matriz que
produz replicantes.
Até que, de repente, vi uma coisa espantosa. E o que vi foi um ser
não-humano – um monstro – representado na figura abaixo:
![](http://api.ning.com/files/ugK2q4WSACYKf7M388KpZKOHNDU2eAZQKWYPHFnRDbDN3itGoeUFY9o9GCWbBtv99lZ54a8VCw1JThzi9vLEtyTkE*51ElkP/Hierarquia2.jpg)
![](http://api.ning.com/files/ugK2q4WSACYKf7M388KpZKOHNDU2eAZQKWYPHFnRDbDN3itGoeUFY9o9GCWbBtv99lZ54a8VCw1JThzi9vLEtyTkE*51ElkP/Hierarquia2.jpg)
Não por acaso. Organizações hierárquicas de seres humanos geram seres
não-humanos. Mas alguma coisa impede que as pessoas vejam isso. Eis a razão
pela qual resolvi escrever este livrinho.
São Paulo, final do inverno de 2012.
Augusto de Franco
INTRODUÇÃO | A Matrix existe?
.
O título originalmente planejado para este texto era afirmativo: “A
Matrix Existe”. Abri até um grupo no Facebook, exatamente com esse nome, para
reunir reflexões sobre o tema. À medida que o papo rolava lá no grupo fui sendo
assaltado, porém, por crescentes dúvidas.
Como se sabe a idéia de Matrix surgiu com a trilogia cinematográfica dos
irmãos Wachowski – The Matrix (1999), The Matrix Reloaded (2003) eMatrix Revolutions (2003) – cujo argumento (do primeiro filme) foi sofrivelmente
apresentado pelas distribuidoras mais ou menos assim: “Em um futuro próximo,
o jovem programador Thomas Anderson, um hacker de codinome Neo, que mora em um
cubículo escuro, é atormentado por estranhos pesadelos, nos quais se encontra
conectado por cabos e contra sua vontade, em um imenso sistema de computadores
do futuro. Em todas essas ocasiões acorda gritando no exato momento em que os
eletrodos estão para penetrar em seu cérebro. À medida que o sonho se repete,
Anderson começa a ter dúvidas sobre a realidade. Por meio do encontro com os
misteriosos Morpheus e Trinity, Thomas descobre que é, assim como outras
pessoas, vítima da Matrix, um sistema inteligente artificial que manipula a
mente das pessoas, criando a ilusão de um mundo real enquanto usa os cérebros e
os corpos dos indivíduos para produzir energia. Morpheus está convencido de que
Thomas é o aguardado messias capaz de enfrentar a Matrix e conduzir as pessoas
de volta à realidade e à liberdade”.
A tese central do filme – refiro-me não apenas ao primeiro filme, mas à
trilogia completa (1999-2003) – foi vista assim por alguns: "O que experimentamos como realidade é uma realidade virtual
artificial gerada pela 'Matrix', o megacomputador acoplado às nossas
mentes" (1). E, de certo
modo, foi essa a visão que se generalizou. Mas eu não tinha tal apreensão da
metáfora. Apreendia seu lado social, não o seu lado, por assim dizer,
tecnológico. Inclusive porque achava (e continuo achando) que toda 'realidade'
é virtual, em um sentido ampliado do termo.
Por outro lado, o filme passa também uma visão conspiratória. Como se
existissem centros manipuladores responsáveis pela alienação massiva das
pessoas. Também não penso assim. Não existe um Grande Irmão (humano ou
extra-humano) que tudo controla. Acho que a Matrix, se existe, só existe porque
é replicada por nós, continuamente (como escrevi em 2009, no texto "Você é
o inimigo”) (2). Trabalhar com a metáfora da Matrix significa, para mim,
rejeitar a hipótese de que existe um culpado, um inimigo universal responsável
por todo mal que nos assola.
Então transformei o nome originalmente imaginado em uma pergunta,
colocando-a como título desta introdução. A temática social (ou antissocial, em
um sentido maturaniano do termo) permanece todavia. As pessoas continuam
reproduzindo comportamentos muito semelhantes – que deformam o campo social – como se estivessem sob a
influência de um mesmo sistema de crenças, valores, normas de comportamento e
padrões de organização; ou como se rodassem um programa básico que foi
instalado em suas mentes e acham que o mundo (ou ‘a realidade’) é assim mesmo.
Ora, isso evoca a metáfora do filme The Matrix, no qual máquinas poderosas, com inteligência artificial, controlam a
humanidade cativa e as pessoas vão vivendo suas vidas, monótonas ou frenéticas,
em suas modernas colmeias humanas, sem saber disso, tomando a aparência pela
realidade.
Há um paralelo que dá sentido à apreensão social da metáfora. Na Matrix
realmente existente, as pessoas não veem que seu comportamento replicante
deforma o campo social. Elas acham que o mundo social só pode ser interpretado
por meio de um conjunto de crenças básicas de referência, que tomam por
verdades evidentes por si mesmas, axiomas que não carecem de corroboração.
Exemplos dessas crenças são as de que:
§ O ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo.
§ As pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus
próprios interesses materiais (egotistas).
§ Sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação
coletiva.
§ Nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia.
Essas crenças básicas são como parâmetros do programa que foi instalado
nas pessoas. Então elas não se dão conta de que, ao agir com base nesses
pressupostos (em geral não-declarados, mas sempre presentes), reproduzem a
realidade social que foi deformada. Em outras palavras, elas não percebem a
deformação: porque todo mundo sabe que é impossível ser de outro modo.
Essas crenças comuns, que nada têm de científicas (embora sejam
justificadas com base em verossimilhança científica) estão rodando – como um malware – na nuvem social
que chamamos de mente. E estão tão profundamente instaladas no andar de baixo –
ou fundeadas como pré-conceitos no subsolo das consciências (seja lá o que isso
for) – que não podem sequer ser percebidas. Em geral as pessoas não sabem que estão
agindo dentro do “horizonte de eventos” configurado por elas. Como na conhecida
anedota daquele cara que “não sabia que era impossível, foi lá e fez”, as
pessoas, em geral, não fazem nada diferente – que contrarie essas prescrições
básicas de funcionamento do mundo social – porque sabem que é impossível.
Evidentemente estamos aqui tratando de cultura, quer dizer, de
transmissão não-genética de comportamentos, de um programa que roda na rede
social deformando o campo (3). Um software que modifica o hardware. Um hardware que, uma vez modificado, induz a replicação dosoftware; ou seja,
instala automaticamente o programa nas pessoas que a ele se conectam.
A cultura de que estamos tratando é aquela que vem se replicando a
alguns milênios, desde que a rede social foi verticalizada com a ereção de
instituições centralizadas. Alguns a chamam de cultura patriarcal ou guerreira.
Na verdade seu surgimento coincide com o que chamamos de civilização (palavra
que a argúcia de William Irwin Thompson traduziu corretamente por
militarização) (4). Mas se trata apenas da cultura hierárquica.
Num sentido geral aplica-se a palavra hierarquia para designar quaisquer
arranjos de itens (objetos, nomes, valores, categorias) nos quais esses itens
são representados como estando “acima”, “abaixo”, ou “no mesmo nível” de outro.
Em matemática o conceito designa um conjunto ordenado ou um grafo dirigido sem
ciclos direcionados (grafo acíclico dirigido, abreviado por DAG - Directed Acyclic Graph). Mas esse é um sentido deslizado do
original. O termo surgiu para designar ordens de seres intermediários entre
entidades celestes e terrestres (e foi usado, por exemplo, por Pseudo-Dionísio,
o Areopagita, no século 5, para designar os coros angélicos).
A palavra hierarquia vem da palavra latina hierarquia que, por sua vez, vem da palavra grega ἱεραρχία (hierarchía), de ἱεράρχης (hierarchēs), aquele que era encarregado de presidir os
ritos sagrados: ἱερεύς = hiereus, sacerdote, da raiz ἱερός = hieros, sagrado + ἀρχή = arché, tomada em várias acepções conexas como as de poder, governo, ordem,
princípio (organizativo).
A hierarquia é um poder sacerdotal vertical que se instala em uma
sociedade instituindo artificialmente a necessidade da intermediação por meio
de separações (entre superiores e inferiores). Em geral é representada pela
pirâmide (poucos em cima e muitos em baixo) ou pela aranha (que tem uma cabeça
e vários braços ou pernas, em oposição a uma estrela-do-mar, que não tem centro
de comando e controle). A hierarquia celeste (com seus serafins, querubins,
tronos, dominações, potestades, virtudes, principados, arcanjos e anjos) e a
hierarquia militar (com generais, coronéis, majores, capitães, tenentes,
sargentos, cabos e soldados) são os exemplos mais comuns, paradigmáticos, de
hierarquia. Mas qualquer padrão de organização que introduz anisotropias no
campo social direcionando fluxos é hierárquico (seja em uma organização
estatal, empresarial ou social, religiosa ou laica, militar ou civil). O
organograma básico de um órgão do governo, de uma empresa ou de uma entidade da
sociedade civil ilustra o padrão de organização hierárquico (as denominações
particulares das posições, funções, cargos ou patentes, pouco importam):
![](http://api.ning.com/files/ugK2q4WSACaq*P6jw*Xa6wVMR0WooYIk2Vrd7ZmtQsH8IFMA9cc2ogoMPAu8gdKSA5WyUqOtvv2omTi8vuPvPNB3qoJY-Df2/HierarquiaOrganograma.gif)
A hierarquia é um padrão de organização que se reproduz como um todo. É
uma deformação no campo social que afeta todos os eventos que ocorrem nesse
campo porque condiciona o fluxo interativo a passar por determinados caminhos
(e não por outros).
Do ponto de vista da topologia da rede social, hierarquia é sinônimo de
centralização. Há poder – no sentido de poder de mandar nos outros – na exata
medida em que há centralização (ou seja, hierarquização).
Para entender melhor esse ponto de vista é necessário examinar os
diagramas de Paul Baran (1964), publicados no famoso paper “On distributed
communications” (5), para perceber as diferenças entre padrões:
centralizado, descentralizado e distribuído.
![](http://api.ning.com/files/ugK2q4WSACawAixkDlyIczkPLhlqB*NrWFek*z-o8uwkLi0IL*Ws75KYhu812cSqun6IstyUltJpGOo0yqR2JbRZyWDOuDjU/BAranbranco.jpg)
No diagrama (B) da figura acima temos o padrão descentralizado que não
representa uma topologia sem centro, mas, pelo contrário, uma configuração
multicentralizada. Esse padrão nada mais é do que uma hierarquia
(correspondendo a um organograma de qualquer entidade hierárquica, como o que
foi representado na figura anterior).
A hierarquia é uma intervenção centralizante na rede social (ou uma
deformação verticalizante do campo social) que permite excluir nodos
(desconectar ou eliminar pessoas), apartar clusters (separar ou eliminar atalhos) e suprimir caminhos (obstruir fluxos,
filtrar ou eliminar conexões). Sem fazer qualquer uma dessas três coisas é
impossível erigir uma hierarquia (ou exercer poder sobre os outros: o que é a
mesma coisa). Em redes totalmente distribuídas não há como fazer nada disso. No
entanto, as redes sociais realmente existentes não são, em geral, totalmente
distribuídas, mas apresentam graus diferentes de distribuição (ou,
inversamente, de centralização) (6).
Mas sem isso – sem centralização, sem a possibilidade de exercer poder
sobre os outros – diz-se (diz a cultura hierárquica), nada poderia funcionar:
as pessoas não poderiam ser educadas, não aprenderiam a respeitar as regras que
garantem a coexistência social e acabariam se entregando a uma guerra de todos
contra todos (porque “a besta humana não seria domada”), as sociedades não
evoluiriam, não teríamos a filosofia, a ciência, a arte, as técnicas, enfim...
o progresso. Estaríamos ainda na idade da pedra. Na Matrix as pessoas acreditam
nisso ou se comportam como se acreditassem, o que é a mesma coisa.
Segundo esse ponto de vista, portanto, a hierarquia é a Matrix realmente
existente.
Ao viver em sistemas hierárquicos você se transforma, em alguma medida,
em um autômato e um replicante da Matrix (uma espécie de unidade borg) (7).
Sim, nesse sentido alguma coisa que evoca fortemente a Matrix existe
mesmo. Então é melhor chamar a coisa pelo nome.
O que vem a seguir são explorações imaginativas na Matrix realmente
existente, quer dizer, livres investigações sobre a hierarquia.
PARTE 1 | COMO A MATRIX É CARREGADA EM VOCÊ
Na Matrix realmente existente um programa padrão – o programa
hierárquico – é carregado em você. Isso acontece toda vez em que você se
conecta a uma organização hierárquica ou sofre a influência de um campo social
deformado por uma hierarquia.
No entanto, o programa hierárquico é instalado inicialmente nas pessoas
durante sua infância e juventude. Em geral, nos dias atuais, esse processo deve
ser completado até à maioridade (o tempo de implantação é, portanto, de 7 a 8
mil dias). é um programa de obediência. Seu objetivo é restringir os graus de
liberdade e desestimular a cooperação. Sua consequência mais nefasta é matar a
criatividade (ou, em um juízo mais rigoroso, dificultar que se forme aquilo que
já foi chamado de alma humana).
Na família
A infecção começa na primeira infância. A instituição encarregada dessa
primeira tarefa é a família (a família monogâmica nuclear, nos dias que
correm). Sua tarefa é: inicializar o programa de controle (não se pode esquecer
que aqui já se revela o que a Matrix é – Matrix é sobre controle).
Sim, começa bem cedo. Gerda Verden-Zöller (1978 e 1982) foi à raiz do
processo pelo qual a criança é desumanizada pelos pais. Ela desvenda o
comportamento controlador na relação materno-infantil, “quando a mãe, nas interações com seus filhos, está atenta ao seu futuro
e as usa para educá-los, preparando-os precisamente para alcançar o dito
futuro. Quando essa dinâmica intencional se estabelece na relação
materno-infantil, a mãe deixa de ver seus filhos como indivíduos específicos, e
restringe seus encontros com eles a essa condição. À proporção que tal
restrição ocorre, um abraço deixa de ser um abraço como ação de plena aceitação
do ser específico dos filhos que se abraça. Transforma-se numa pressão com
certo direcionamento. Do mesmo modo, a mão que ajuda deixa de ser um apoio à
identidade individual da criança, e transforma-se num guia externo que nega
essa identidade” (8).
Vendo a criança ou o bebê como um futuro adulto, os pais não os aceitam
como são no presente, mas como o que devem ser no futuro. Transformam assim os
filhos em objetos de um processo educativo. Não brincam realmente com as
crianças porque não encaram o que fazem com elas como algo que tenha valor em
si (sem qualquer propósito outro do que a própria interação no presente), mas
sempre, em alguma medida, como uma preparação para o futuro. Como consequência,
as crianças não se encaram como interagentes válidos pelo que são e sim apenas
na medida em que atendem às expectativas dos pais, ao cumprir o papel que os
pais delas esperam. Ficam dependentes de aprovação (inicialmente dos pais e,
depois, de qualquer um que cumpra a mesma função de controle sobre elas). E
passam a colocar a aprovação “de cima” no lugar do reconhecimento horizontal de
sua identidade numa comunidade. É assim que têm imensas dificuldades de
desenvolver sua consciência social (ou, em um juízo mais rigoroso, de formar
aquela qualidade da alma que chamamos de humanidade).
A mãe e o pai, na maior parte das vezes, não brincam gratuita e
desinteressadamente com o filho. Querem educá-lo. Querem moldá-lo para que ele
seja “alguém na vida”, querem que ele se torne uma cópia do que eles próprios
foram (ou são) ou uma superação projetada do que não-são: em uma espécie de
vingança compensatória, querem que seus filhos consigam ser (ou ter) o que eles
não foram (ou não tiveram). Quando isso acontece, as crianças deixam de ser o
que são, deixam de ser crianças e passam a ser projetos de adultos, adultos
incompletos que precisam ser formatados para que se completem segundo os
projetos paternos.
Eis a primeira lição embutida no programa: você não pode ser o que é em
sua livre interação com os outros, mas tem que se transformar – tem que ser
consertado, como se tivesse vindo com defeito de fábrica – sob as diretivas de
outrem (dos que estão acima de você). Se não fizer isso, não será aceito como
um sujeito válido. Mas há uma segunda lição.
A família privatiza capital social. A criança apreende a desconfiança
quando ouve a mãe recomendar: “Não vai deixar seus amiguinhos quebrarem seus brinquedos; eles são
seus, não deles!”. Desde tenra idade os filhos são ensinados a separar o que é “nosso” do
que é “dos outros”. São ensinados a aceitar (ou a tolerar) o outro no seu
espaço de vida, mas com restrições. São ensinados que, de certo modo, aqueles
(os outros) são menos legítimos. E desde pequenos os filhos são incentivados a
se destacar dos demais (dos filhos de outras famílias): são recompensados quando
tiram notas mais altas, quando se saem bem (de preferência melhor do que seus
colegas) em provas, quando vencem concursos, competições e torneios e são
admoestados (ou, pelo menos, não elogiados) quando não ficam em primeiro lugar
ou não se sobressaem de algum modo. As razões para essa pedagogia conducionista
ou behaviorista de recompensas e punições nunca são expostas abertamente.
Porque seus condutores não sabem mesmo o que estão fazendo. Ou porque não é
necessário.
Seus filhos são mais iguais do que os outros filhos. Isso também não
precisa ser dito: a criança apreende tudo apenas assistindo ao comportamento
recorrente dos pais. Aquele tratamento que deveríamos dispensar aos amigos,
reservamos para os “do nosso sangue”. Para estes, sim, fazemos coisas
gratuitas. Para os amigos, porém, tratamos tudo na base da reciprocidade (tal
como os economistas tomam e deformam o conceito): eu lhe ajudo hoje, mas você
fica em dívida comigo e deve me ajudar mais adiante. Isso, é claro, é
implícito, é tácito, raramente declarado, mas faz parte do código de tratamento
com estranhos: sim, os outros, os que não são da minha família, os que não têm
partes significativas do meu DNA ou que não privaram da convivência fechada que
se conformou em torno do meu “berço”, esses não são “meus”, são “seus” (ou de
alguém) e é você (ou alguém, que não eu) que deve cuidar deles.
É assim que cada um desses núcleos que chamamos de família conforma uma
unidade de proteção contra a interação, um destacamento prevenido contra o
mundo exterior (contra o outro, sobretudo o outro-imprevisível). Então esta é a
segunda lição embutida no programa: a separação, a não aceitação plena dos “de
fora”, a desvalorização do outro (que nunca mais será encarado como um outro-eu-mesmo) e a sobrevalorização de um inner circle, composto pelos “de dentro” (e disso nunca mais o adulto assim
produzido vai conseguir se livrar: vai passar a vida inteira tentando montar ou
aderir a grupos proprietários fechados nos quais os “de dentro” valem mais do
que os “de fora” e em que o outro só é aceito na medida em que deixar de ser
ele mesmo para se transformar em um “nós” organizacional).
Mas o programa, na sua versão básica full, só é instalado mesmo na escola (atuando como igreja) e, em alguns
casos, na igreja (atuando como escola), como veremos nos próximos tópicos.
Na escola
Muito bem. Aí a criança entra na escola e, como se diz, escapa do espeto para cair na brasa. Não é a toa que as crianças, em geral, não gostam de ir para a escola
(com exceção, às vezes, da chamada pré-escola, onde podem brincar, quer dizer,
ser o que são: crianças). E não é a toa que, mais tarde, quando forem jovens,
comemorarão efusivamente a saída da escola, como se tivessem reconquistado a
liberdade após cumprir uma pena (se a escola fosse boa para elas, lamentariam
ter de deixá-la, certo?).
Então a criança entra – ou seja, é compulsoriamente aprisionada, por
determinação da família e do Estado – em uma instituição estruturada para lhe
proteger da livre-aprendizagem que, até então – tirando-se as intervenções
instrumentalizadoras dos pais –, estava indo muito bem, obrigado. Mas agora
não. Agora ela vai aprender não o que ela quer realmente aprender e sim o que
alguém quer que ela aprenda. O nome disso é ensino.
Rapidamente a criança aprende que não adianta espernear. Logo se dá
conta de que resistir é inútil: eis a primeira lição. Como escreveu
Bob Black (1985), agora ela está em um desses “campos de concentração para adquirir o hábito da obediência e da
pontualidade que tanto jeito fazem a um trabalhador” (9).
Sim, ela está sendo formatada para trabalhar para alguém ou, em casos
excepcionais, para servir e reproduzir um sistema que obrigará alguém a
trabalhar para outrem. Para tanto, vai receber um implante, um conjunto de
parâmetros meméticos que assegurarão que o programa que nelas será instalado
pela escola vai poder rodar sem problema. Esse software especial que será carregado na criança é a versão básica do
“programa-escravo” (ou, em casos excepcionais, do “programa-escravizador”: na
verdade as rotinas básicas de ambos os programas são as mesmas).
Ao contrário do que se propaga, ao entrar na escola a criança não entrou
em um ambiente capaz de ensejar ou acelerar a sua aprendizagem, nem mesmo em
uma instituição de transferência de conhecimentos. Conhecimentos existem, por
certo, mas são apenas a desculpa legitimatória, o produto aparente que
justifica a existência da fábrica ou o lubrificante para a máquina não
funcionar a seco. Qualquer coisa serve, inclusive manter, no século 21,
currículos que faziam sentido na Idade Média. Porque o fundamental é o programa
que será instalado. É para isso que ela está lá. Na escola.
Mas para isso a escola precisa ser uma instituição heterodidata. Precisa
desestimular fortemente o autodidatismo (aprender por si mesmo, buscando e
inventando) e proibir – ou restringir a interação a ponto de inviabilizar na
prática – o alterdidatismo (aprender com o outro, cocriando e compartilhando).
Se a escola não fosse baseada em heterodidatismo não teria razão de existir.
O heterodidatismo se realiza por meio da separação fundamental de corpos
que funda a escola: a separação entre um corpo docente e um corpo discente.
Esta separação dá origem a uma subordinação: os discentes são sub-ordenados em
relação aos docentes. Eis a primeira subordinação que a criança experimenta
fora do seu ninho familiar. Alguns outros – que não pertencem à sua família
(sua primeira comunidade) – vão poder agora dizer o que ela deve fazer, vão
poder mandar nela. E serão seus próprios pais os avalistas dessa subordinação.
Aqueles mesmos pais que a preveniram contra os estranhos, agora –
paradoxalmente para a criança – vão lhe dizer que há um tipo de estranho que
ela deve acatar: seu professor ou professora. A fim de suavizar esse processo,
extremamente violento em termos psicológicos para a criança, a professora é
chamada muitas vezes de “tia” (para manter o liame com relações familiares que
ela já conhece: é apenas uma forma de docemente enganá-la), o que é facilitado
em virtude da imensa maioria do corpo docente no ensino básico ser composta por
mulheres (sim, isso também faz parte do sistema).
Então a criança é ensinada a obedecer. Há um deslocamento. Obedecer aos
pais é uma preparação para obedecer aos professores. Obedecer aos burocratas do
ensinamento (os professores) será uma preparação para obedecer aos burocratas
religiosos (os padres, pastores, rabinos, imams e outros sacerdotes). Às vezes
esse processo é concomitante, quando a primeira experiência heterodidata
acontece na escola e simultaneamente em alguma igreja (por meio da catequese),
ou quando a escola é religiosa, ou quando tudo isso é aberta e escandalosamente
a mesma coisa (como em uma madrassa). Obedecer aos pais e professores é uma
preparação para obedecer aos chefes em geral (nas futuras organizações sociais,
estatais ou empresariais de que ela fará parte quando for jovem ou adulta).
O fato é que a criança continua buscando a legitimação para o que faz em
alguém que está acima dela e fora da sua interação com seus pares. A escola se
organiza como um quisto, separado da comunidade, protegido da interação com a
vizinhança por cercas, muros, grades, portas, fechaduras (e dentro da escola
muitas vezes as portas estão sempre trancadas, somente o funcionário que
carrega as chaves pode abri-las, caso isso seja autorizado pela direção do
estabelecimento). Não há significativa interação entre esse ambiente fechado,
comandado e controlado por um diretor, e as pessoas da comunidade onde se situa
a escola. Com raríssimas exceções (que confirmam a regra), os pais e outros
parentes, os vizinhos e os amigos da criança, não podem interferir no processo
pedagógico a que ela está sendo submetida.
Na escola a criança será aceita na medida em que responder corretamente
às expectativas do alto; no caso, pela primeira vez, de uma burocracia, de uma
ordem instituída top down. A escola (ou, às vezes, a igreja) é a primeira experiência da criança
de possessão por uma entidade não-humana (monstruosidade que, a despeito de
todos os problemas já mencionados anteriormente, não ocorria na família). Ao
entrar em um desses campos sociais deformados ela, a criança, é violada, pela
primeira vez, por uma hierarquia.
A principal violação é a proibição de brincar. Ao entrar na escola a
criança não pode mais brincar a não ser em períodos determinados, sob rígidas
condições e contínua vigilância. É a chamada hora do recreio e se há um recreio
como forma de distração isso significa que todo resto do tempo em que a criança
está aprisionada na escola é de trabalho, obrigação, pena, jugo. A hora do
recreio evoca aqueles banhos de sol a que os presidiários têm direito
periodicamente.
Na sua origem, a palavra recrear se referia ao ato de criar, de produzir
algo de novo. É recreando que a criança aprende. Mas escola não é sobre
aprendizagem e sim sobre ensino. Ensino é processo forçado, estafante. Então
recreio foi ressignificado para expressar uma espécie de refresco terapêutico,
necessário para prevenir ou remediar as afecções causadas pelo ensino.
Os “educadores” (quer dizer, os ensinadores) argumentam que na
pré-escola (na educação infantil, pré-escolar ou no que era chamado de jardim
de infância) a criança pode brincar. O problema é que, quando entra na escola,
a criança ainda é criança, ainda está na infância. Todo o ensino básico deveria
continuar sendo um jardim de infância e deveria ser considerado como um período
de aprendizagem infantil. Mas aí não seria ensino. E então não existiria
escola!
Outra violação importante é a proibição imposta à criança de aprender o
que ela quer aprender. Na escola ela não tem que querer. Tem que se sujeitar a
um currículo ou a um conjunto de temas (verticais ou transversais, pouco
importa) previamente escolhidos pela burocracia do ensinamento e imposto ou
reconhecido e avalizado pelo Estado. O resultado é que a criança não aprende
livremente: é ensinada compulsoriamente. E os problemas de aprendizagem que
essa violação da liberdade fundamental de aprender acarretará são, na verdade,
problemas de ensinagem (inclusive os incorretamente chamados “transtornos de
aprendizagem” são, na sua maior parte, transtornos introduzidos pela
ensinagem). Se parássemos de querer ensinar e deixássemos a criança aprender (o
que ela quer aprender e não o que queremos que ela aprenda), a maioria desses
transtornos simplesmente desapareceria e não seria necessário impregnar as
crianças com drogas pesadas (como o metilfenidato, muito usado atualmente – e
criminosamente) ou dopá-las (com outras substâncias que agem estruturalmente
como anfetaminas).
A proibição de aprender livremente – pois aprender sem ser ensinado é
subversivo: é um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de
gestão das hierarquias de todo tipo – vem acompanhada da proibição de inventar.
No fundo é a mesma coisa porque a aprendizagem é sempre uma invenção (enquanto
a ensinagem é uma reprodução). Então a criança é desestimulada a inventar, a
criar, a cocriar, em suma, a fazer a única coisa capaz de deixá-la sã em um
meio social perturbado.
Ela será aceita, incluída, validada e recompensada na medida em que
souber reproduzir um conteúdo pretérito ou um comportamento cognitivo esperado,
não na medida em que se aventurar para gerar, individual ou coletivamente, um
novo conteúdo ou um comportamento cognitivo inédito. Se a criança for pega
desenhando durante uma aula de gramática, compondo uma música durante uma prova
de ciências ou elaborando um game no seu laptop durante uma atividade de
educação física, será advertida. Se várias crianças se agruparem para fazer
qualquer uma dessas coisas, será pior: o grupo será punido, seus pais receberão
notificações. Comportamentos desviantes do heterodidatismo, sobretudo quando
coletivos, não podem ficar impunes. Os ensinadores tomam isso como uma ofensa
pessoal.
Os educadores encarregados de vigiar e punir as crianças nem se dão
conta de que assim procedendo estão arrancando as raízes da criatividade
daqueles gênios potenciais – e reais, sim, reais – da humanidade. E eles não se
dão conta porque são autômatos, replicantes da Matrix. Eles estão cumprindo o
seu papel antissocial: estão apenas assassinando Mozart ao gerir aquela estranha máquina de entortar seres humanos. Como escreveu Saint-Exupery (1939), “não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha
máquina de entortar homens... Mozart está condenado... É alguma coisa como a
espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. O que me
atormenta é o ponto de vista do jardineiro... é ver Mozart assassinado um pouco
em cada um desses homens” (10).
A instalação do programa se completa com o ensino da competição. Na
escola a criança é desestimulada a cooperar e incentivada a competir com seus
pares. Essa é a violação hierárquica em estado puro, a principal consequência
maléfica da deformação centralizadora do campo social ou do direcionamento
vertical dos fluxos. A hierarquia constrange a corrente a fluir para cima.
Sair-se bem é subir, galgar os degraus de uma escada, passar de ano recebendo o
grau correspondente. Para tanto, a criança tem que ser arrancada do emaranhado
que conforma com seus pares, tem que ser individualizada (ou despersonalizada
ao ser desconectada da sua rede de amigos) para poder receber – sempre de cima
– as recompensas devidas ao seu esforço solitário. As avaliações são
individuais, não de um grupo que co-opera (por mais que possam existir grupos
que cooperem). Tanto mais aprovação o aluno obterá quanto mais se destacar dos
semelhantes em vez de se aproximar deles. A solidariedade, a ajuda-mútua, a
cooperação, não são valores e não compõem os critérios de avaliação adotados
pela escola. Cada qual cuide de si. Os outros que se danem. É assim que a
criança é ensinada (quer dizer, deformada) para a competição.
Na competição, a rigor, vale tudo (tudo aquilo que os sistemas de
comando-e-controle não conseguirem proibir, coibir ou reprimir). Como para a
cultura competitiva a coisa mais importante é levar vantagem, na escola a
criança aprende a trapacear.
A principal trapaça é a cola. Logo a cola que, na verdade, não deveria
ser trapaça e sim um impulso natural de compartilhamento. Só vira trapaça
porque existe a prova (individual). Se os desafios de aprendizagem fossem
coletivos, a “cola” seria um comportamento não apenas lícito, mas desejável. A
imitação ou o imitamento (cloning) é uma fenomenologia da interação
profundamente associada à aprendizagem. Só aprendemos quando clonamos, quer
dizer, a rigor, colamos. Assim é com todas as espécies vivas. É por meio de cloning que os cupins
conseguem construir seus sofisticados cupinzeiros. E que as aves do céu
conseguem voar em bandos em formações tão surpreendentes (flocking) e os
peixes do mar desempenham aquelas evoluções fantásticas (shoaling).
Todas as entidades self-propelled que interagem imitam umas às outras. Assim também os humanos.
A criança aprende imitando o que percebe em seu ambiente, inicialmente
clonando o comportamento dos pais e irmãos e, depois, dos membros do seu
emaranhado social ampliado (outros parentes, vizinhos e amigos). Na escola, a
criança vai clonar o comportamento dos professores, mas como, nessa etapa, ela
já está conectada a uma rede social mais ampla, será fortemente desestimulada a
clonar também o comportamento dos seus colegas. A rede social da turma ou
classe escolar está centralizada no professor justamente para não ser uma rede
social distribuída. Isto é hierarquia!
A hierarquia não consegue, entretanto, evitar as disfunções que sua
perturbação provoca no campo social. A sociabilidade básica dos humanos é
cooperativa. Sem cooperação não podemos ser humanos (pois a própria linguagem
ou o linguajear e o conversar pressupõem – e são mesmo – cooperação). Mas
quando o ambiente favorece atitudes competitivas e desestimula atitudes
cooperativas, é inevitável que patologias sociais e individuais apareçam como
disfunções.
A disfunção mais comentada atualmente é o bullying. É uma doença do ambiente e não das pessoas. Indivíduos valentões
(tiranetes ou bullies, que estão na origem da palavra) só podem se comportar como tais quando
são despersonalizados pelo sistema. Eles são sintomas de alguma doença coletiva
que foi contraída pela rede centralizada. A suposta necessidade de controlar ou
de dominar os outros não se manifestaria em indivíduos se eles não vivessem em
ambientes desenhados para o controle.
Parece óbvio que para acabar com o bullying nas escolas bastaria acabar com as escolas. Enquanto isso não é sequer
cogitado, o assédio e o molestamento continuarão. E o bullying ocorre praticamente em todos os ambientes centralizados ou em todos os
campos sociais deformados pela hierarquia (nos locais de trabalho, nas gangues
de vizinhança, nas organizações militares et coetera).
Ao final de sete a oito anos de sua transformação contínua em objeto do
ensino, servindo como matéria-prima da fábrica escolar, o serviço está quase
pronto. A criança capturada com seis ou sete anos de idade foi ensinada a se
conformar com a restrição de sua liberdade (pois resistir é inútil), foi
impedida de brincar (pois o que vale é se dedicar a coisas sérias, que têm um
objetivo e produzem um resultado), foi desestimulada a aprender o que ela quer
aprender, a inventar, a criar e cocriar (pois nada disso é importante e sim ser
ensinado e saber reproduzir os ensinamentos recebidos) e foi induzida a
competir (pois cooperar é um atraso de vida e não leva a lugar algum). A rigor
a criança agora está morta – teve sua infância ceifada – e o que apareceu no
seu lugar foi um jovem formatado para obedecer (e para se sentir culpado e
inculpar os outros quando transgredir). Pronto. O programa hierárquico está carregado,
com sucesso, na sua versão básica.
Mais tarde a mesma escola – ou seu espichamento vertical corporativo, a
universidade – ensinará ao jovem os argumentos para justificar tudo isso. Na
verdade ele aprenderá a repetir um amontoado de alegações baseadas nas crenças
(ideológicas, que nada tem de científicas) de que o ser humano é inerentemente
(ou por natureza) competitivo, de que a vida é uma luta em que cada um faz
escolhas para maximizar a satisfação de seus próprios interesses, de que só os
vencedores contam e os vencedores são os que fazem (individualmente) as
escolhas certas e de que nada pode funcionar sem... hierarquia!
Mas muito antes de saber racionalizar, a criança que foi infectada na
escola, que teve em si instalado o programa-escravo, reproduzirá com seu
comportamento cotidiano o programa que recebeu. Cada escolarizado se
transformará num escolarizador (e, mais tarde, converterá todas as organizações
que fundar ou das quais vier a fazer parte, em espécies de escolas). É assim
que o sistema hierárquico – a Matrix realmente existente – se reproduz.
Na igreja
Não raro a igreja (e a religião) atua sobre a criança como escola
(transformando-a em vítima do ensino, na chamada catequese). A intervenção
religiosa vai mais fundo, porém: seu objetivo é inculcar ideias-implante, memes
(programas) maliciosos capazes de torná-la replicante de configurações
hierárquicas (em geral sacerdotais). Essa operação é feita em um nível de
profundidade que nenhum ensino laico conseguiria atingir.
Na igreja a criança será ensinada de que existe um único sistema de
crenças correto e plenamente verdadeiro (aquele que ela está recebendo, é
claro; e, por conseguinte, todos os outros serão errados e falsos). Mesmo
quando isso não é dito claramente, fica implícito: do contrário por que estaria
sendo catequizada naquela religião e não em outra? Ou por que não estaria
recebendo uma iniciação ecumênica, em todas as tradições religiosas?
É uma experiência e tanto de violação do humano essa de ser inoculado
com a ideia perversa de negação de todas as demais crenças e de invalidação de
todas as outras conversações místicas diferentes das suas. Por si mesma a
criança jamais chegaria a tal conclusão, que é evidentemente estúpida. Isso tem
que ser impresso nela, marcado, como se marca o gado, com ferro em brasa (11).
A separação entre fiel e infiel, a deslegitimação do infiel como um
igual e a sua negação, rejeição e exclusão, foi uma das coisas mais perversas
introduzidas pela hierarquia religiosa (na verdade pela hierarquia, porquanto,
num sentido mais profundo, toda hierarquia é religiosa, é sempre um poder
sagrado, quer dizer, separado do vulgo, do profano) nas sociedades. Isso nada
tem a ver com a espiritualidade, com a experiência mística “na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um
domínio mais amplo de relações de existência... [e que]depende da rede de conversações em que ela está imersa e na
qual vive a pessoa que tem essa experiência”, como escreveu Humberto Maturana
(1993) (12). Isso tem a ver com a instalação daquele mesmo programa-escravo que
a escola existe para implantar.
As ideias-implante básicas variam com a tradição religiosa, mas são mais
ou menos as seguintes, há milênios, pelo menos desde que os patriarcas
“indo-europeus” (seja lá o que isso possa ter sido) – ao que tudo indica nas
civilizações derivadas das primeiras formações hierárquicas da Mesopotâmia
antiga (ou por elas contaminadas) – erigiram “uma fronteira de negação de
todas as conversações místicas diferentes das suas”:
Em primeiro lugar você tem que introjetar a ideia de que é um ser
inferior e de que há um ser superior, sobre-humano, que você tem que temer, e
ao qual tem que se sujeitar (tornando-se um servo desse ser superior: sim, a
palavra utilizada é esta mesmo: “servo”).
Em segundo lugar você tem que acreditar que, mesmo que não faça nada de
ruim, já está errado, simplesmente por ser o que é: um humano (imperfeito,
impuro e mau) e não um sobre-humano (perfeito e puro, o único ser realmente
bom). Em certas tradições essa crença é reforçada pelo mito perverso de um
pecado original.
Em terceiro lugar você tem que abrir mão de tentar ter uma experiência
direta (sem mediação) de contato com esse suposto poder sobre-humano. Para que
o ser sobre-humano possa se relacionar com os humanos foram estabelecidos
intermediários (os sacerdotes). E para que você possa ser salvo das
consequências dos erros (pecados) inerentes à sua condição humana, foi
construído um programa capaz de protegê-lo da interação com esse poder terrível
e, ao mesmo tempo, capaz de incluí-lo na lista dos fiéis, ou seja, no rebanho
dos que serão salvos por ele, se lhe prestarem o devido culto. Esse programa é
a religião.
Em quarto e último lugar você tem que obedecer às diretivas dos
sacerdotes que constituem a igreja (docente), fora da qual não há salvação.
Parece com escola – e é escola mesmo – porque a relação fundante da
escola permanece: a separação entre um corpo docente e um corpo discente. Com
efeito, onde há religião há sempre duas igrejas: uma docente (dos sacerdotes,
dos pastores) e outra discente ou ensinada (dos leigos, do rebanho).
Mas é mais grave ainda. O objetivo de toda essa operação é
sacerdotalizar o mundo, quer dizer, forjar um mundo social que só funciona por
meio da intermediação e sacralizá-lo de alto a baixo. Atenção: você não está
mais em um cosmos social isotrópico. Há alguém acima (ou alguma coisa terrível,
com poder incomensurável) que verticalizou os fluxos. Esse poder não-humano
conferiu atributos especiais a intermediários humanos que, por sua vez,
ganharam autorização para se reproduzir como estamento, investindo outros
humanos da mesma função privativa da sua condição e para sagrar e consagrar
ambientes, eventos e pessoas (13).
A humanidade não é composta por iguais na medida em que alguns estão
mais próximos (ou recebem mais graças) dessa entidade sobre-humana do que
outros. Há agora também os santos, rishis, mahatmas, pessoas justas... que têm
um status diferente das
pessoas comuns, pecadoras, injustas. As pessoas normais não são simplesmente
pessoas, mas espécies de santos fracassados: se não são santas é sinal de não
foram boas o bastante. Há um fundamento para distribuir os humanos segundo os
degraus de uma escada, pela sua proximidade com a hierarquia sobrenatural que
penetra o mundo (social) dos humanos.
Ainda quando nada disso seja dito assim tão cruamente, está implícito,
vem junto no pacote. O resultado mais banal (mas não menos cruel) é que você
vai ficar achando que existem pessoas mais importantes do que outras, mais
importantes do que você. Grande parte das pessoas acha isso e se comporta
condizentemente com tal crença, enchendo-se de reverência para falar com um
superior (não só um hierarca eclesiástico, mas qualquer superior, quer dizer,
alguém que tenha mais poder, mais riqueza, mais diplomas ou mais fama do que
você). Por isso que do mundo religioso para o mundo laico é um pulo. Pessoas
poderosas, ricas, muito tituladas e famosas vão ser encaradas, nessa ordem
social verticalizada, como superiores. Chefes têm alguma razão transcendente
para estarem na posição que ocupam e devem ser nomeados pelos seus títulos
diferenciais, obedecidos, tratados com certo temor e, não raro, com servilismo.
Uma criança que recebe tal carga de ideias (pouco benignas, convenhamos,
do ponto de vista da liberdade e da cooperação) – ainda que receba tudo
adocicadamente, por meio de historinhas edificantes e de exemplos florais e
pastorais que exalcem a beleza, a graça, a exuberância da natureza criada e
pervadida pelo amor divino, como fazem os catequistas – não conseguirá se
recuperar facilmente. Alguma coisa dentro dela ficará lesionada para o resto da
vida.
Mas essa é a apenas a primeira intervenção da igreja. Em muitos casos o
jovem e o adulto continuarão sob influência da igreja e recebendo atualizações
do programa, ainda na condição de leigos (ou de membros do rebanho, da igreja
discente). Em outros casos, em menor número, o adulto entrará para a ordem
religiosa que erigiu a igreja docente, integrando-se à sua burocracia
sacerdotal e se convertendo em um hierarca (condição da qual dificilmente
escapará ileso depois de ter sido ordenado, quer dizer, depois de ter
reconhecida pela hierarquia a sua capacidade de reproduzir a ordem vertical da
Matrix).
O processo chegará ao paroxismo quando, ao lado da igreja e de outras
organizações confessionais ou devocionais (seitas, associações religiosas,
sociedades, irmandades, fraternidades), entrarem em cena as organizações
esotéricas (como as maçonarias realmente clandestinas e as organizações
secretas de cunho iniciático, em especial as ordens religioso-militares que
ecoam tradições templárias, por meio das quais o programa será instalado então
na sua versão hard, quer dizer, na sua versão profissional, para desenvolvedores).
Nas organizações sociais e políticas
Morta a criança, trata-se agora de dar continuidade ao processo de
impregnação do jovem que foi formatado. Isso continua na escola (e, às vezes,
na igreja). Mas agora aparecem novas instituições, como as organizações sociais
e políticas ditas “de juventude”, os clubes recreativos, em alguns casos as
gangues e as organizações criminosas (como o narcotráfico, que recruta
inclusive crianças), os chamados “movimentos sociais” (sobretudo os aparelhados
por organizações corporativas e políticas hierárquicas, em especial o movimento
estudantil secundarista), as organizações civis da nova burocracia
associacionista das ONGs (incluindo sociedades, fundações etc.) e os chamados
clubes de serviço. O que há de comum a todas elas é que são organizações
hierárquicas. São espécies de servidores onde os programas estão prontos para
serem baixados e instalados. Basta você entrar (se conectar) a uma delas para o download iniciar automaticamente. E os programas – as diversas versões do mesmo
programa hierárquico – são executáveis.
Um pouco mais tarde será a vez do quartel (quando há serviço obrigatório
às forças armadas), em alguns casos (dependendo da época e do lugar) das
organizações políticas clandestinas, ditas revolucionárias (em geral estruturadas
segundo um padrão fortemente centralizado, quando não militar), e da chamada
juventude dos partidos. Tudo isso atuará concomitantemente (com exceção do
trabalho infantil) ao trabalho (como trainee ou como auxiliar
desqualificado de serviços gerais) em empresas e em outras organizações
burocráticas do Estado ou da sociedade civil, na passagem da primeira juventude
(se se puder falar assim), para a idade adulta jovem.
As organizações “de juventude”, de um modo geral, são campos de
iniciação e treinamento em métodos e processos autocráticos e hierárquicos.
Curiosamente são dirigidas – ostensiva ou ocultamente –, em grande parte, por
pessoas não-jovens. Políticas para juventude são discutidas nos comitês
centrais de organizações gerontocráticas, onde dirigentes idosos combinam entre
si como recrutar mais e mais jovens para submetê-los às suas chefias ou
enquadrá-los em suas hierarquias.
Quando são organizações políticas “de direita” as organizações de jovens
têm como objetivo a inculcação de ideologias e o treinamento em métodos de
comando-e-controle. Quando são “de esquerda” têm como objetivo a inculcação de
ideologias e o treinamento em métodos de comando-e-controle. A única diferença
é que, no primeiro caso, há o pressuposto da manutenção da ordem e das
instituições seculares (como a família, a tradição e a propriedade e, às vezes,
a religião e a “raça”) e, no segundo, há o objetivo declarado de trocar a ordem
atual por outra ordem top down (igualmente hierárquica, mas com novos atores exercendo o
comando-e-controle). Há também uma diferença nas ditas “de esquerda”: elas
treinam os jovens em técnicas de manipulação de massas e condução de
assembleias, abrindo um espaço participativo (e pouco interativo) para tanto.
Nesses ambientes de arrebanhamento, sempre polarizados por líderes mais
antigos, o jovem vai aprender a ser um profissional de reunião, a votar tudo, a
cabalar votos, a fazer campanhas, a defender propostas, a atacar e destruir as
propostas adversárias e, às vezes, a destruir também as pessoas que têm tais
propostas, que passarão a ser consideradas como inimigos. Mas todas essas
organizações – sejam “de esquerda” ou “de direita” – são sideradas pelo
imperativo de formar novos líderes (que serão os substitutos dos hierarcas atuais, também chamados de
líderes).
Cabe aqui uma nota sobre o papel dos partidos, essas instituições
hierárquicas em que as pessoas aprendem a privatizar a esfera pública.
Partidos são um tipo especial de corporação para fazer valer os
interesses de um grupo sobre os interesses de outros grupos e pessoas com base
em (ou tomando como pretexto) um programa, um conjunto de ideias a partir das
quais seja possível conquistar e reter o poder para tornar legítimo o exercício
(ilegítimo do ponto de vista social, quer dizer, do ponto de vista das redes
sociais distribuídas) de comandar e controlar os outros.
Os primeiros partidos foram religiosos – foram as castas sacerdotais que
erigiram o Estado – e, portanto, partidos são, na origem, organizações
hierárquicas stricto sensu.
Partidos são um modo de proteger as pessoas da experiência de política
pública. Para tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de
oligopólio (nas democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua
existência legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer política
pública no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas comunidades): alguém
fará tal política por elas! Mesmo nas democracias dos modernos entende-se que
as pessoas não devem fazer política pública, a menos que entrem em um partido:
uma espécie de agência de empregos estatais, uma organização privada autorizada
a disputar com outras organizações privadas congêneres o acesso às instituições
estatais reconhecidas legalmente como públicas e, portanto, encarregada com
exclusividade de fazer política pública. Enxugando de toda literatura
legitimatória as teorias liberais sobre o papel dos partidos na democracia, o
que sobra é mais ou menos isso aí.
Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso
diferencial ao exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de
partidos privatiza a política. Ao se conferir aos partidos – com exclusividade
– o condão de transformar politics em policy, as pessoas viram automaticamente clientela do sistema.
Ao entrar em um partido – mesmo que seja no seu setor reservado à
juventude – a pessoa começa a ser deformada. Começa a achar que a sociedade é
um campo de disputa de hegemonia e que a política é uma espécie de “arte da
guerra”. Trata-se, em suma, de impor a vontade de um grupo à sociedade, por
todos os meios lícitos (e, não raro, ilícitos).
Jovens que tiveram sua iniciação política na vida partidária terão
imensas dificuldades de se libertar da prática de instrumentalização dos outros
em nome de uma causa (de alguns), não raro permanecerão com a ideia de que os
fins justificam os meios, aprenderão a mentir e a usar a mentira como método,
se comportarão como membros de uma quadrilha ou gangue e, mesmo contra seus
declarados “valores”, passarão a justificar – ou pelo menos se omitirão de
denunciar ou reprovar – a corrupção e outros crimes, quando praticados pelos
“nossos”.
Na medida em que democracia é mais o “metabolismo” de uma comunidade de
projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma comunidade para
algum lugar segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus
interesses – uma definição nua e crua de partido – nos partidos o jovem
aprenderá, essencialmente, autocracia (e, o que é mais curioso, fará isso
reproduzindo incessantemente discursos elogiando a democracia).
No quartel
No quartel o programa hierárquico é atualizado com a instalação de uma
versão bruta, na verdade boçal. Pela primeira vez a hierarquia é abertamente
apresentada como um princípio necessário para se viver (ou sobreviver) na
guerra universal e eterna em que supostamente se encontra (ou é) o mundo.
Segundo o cretinismo inerente à ideologia militar, a guerra é uma realidade
permanentemente presente: ela existe desde a fundação da sociedade humana e
existirá por todo o sempre.
Si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra): é o lema principal, que
está escrito nos muros dos quartéis. Deveria ser óbvio que se alguém se prepara
para a guerra terá a guerra e não o contrário. Só a custa de alta dose de
impregnação ideológica uma pessoa normal pode assimilar essa contradição.
Aceitá-la significa admitir o pressuposto de que o ser humano é, por natureza,
um homo hostilis, ou seja, inerentemente competitivo e que, na ausência de um poder
acima deles, que refreie seus impulsos primitivos, os seres humanos se
dilacerariam em uma bellum omnium contra omnes (uma guerra de todos contra todos), como escreveu o famoso ideólogo do
Estado Thomas Hobbes (1651) (14).
Ora, preparação para a guerra exige hierarquia. Na guerra não se pode
romper, diluir, retardar ou mediar o fluxo vertical comando-execução. Como, em
tempos de paz, as pessoas têm que se preparar para guerra, então, mesmo na
ausência de qualquer conflito – que eventualmente justificasse o controle
absoluto dos chefes sobre seus subordinados, por questão de vida ou morte – há
que se observar rigorosamente a mais estrita sequência
ordem-hierarquia-disciplina-obediência. Em outras palavras: toda questão de
vida vira uma questão de morte. Eis a raiz necrófila da ideologia militar.
No quartel o jovem experimentará, pela primeira vez, o que é o mando de
uma pessoa sobre outra (e a sujeição de uma pessoa à outra) em toda sua crueza,
sem qualquer justificativa ou necessidade de explicação racional: quem manda,
pode mandar um recruta fazer quase qualquer coisa: lavar o pátio, carregar
móveis para a mudança de residência de um oficial, comprar cigarros no bar da
esquina, “pagar” quarenta flexões... Isso é deliberadamente estimulado para
treinar os subordinados na obediência. Para suportar tal aberração, alguns scripts adicionais do
programa-escravo da Matrix serão inculcados no recruta por meio de aforismos
fortemente carregados de preconceitos: “O superior não erra nunca, a não ser
por culpa única e exclusiva do subordinado”; “Só pode mandar quem
aprendeu a obedecer”; “Indisciplina coletiva é erro de comando”
etc.; alem de um conjunto interminável de outros ditos chulos, do tipo “O
quartel é o lugar onde o filho chora e a mãe não vê”, ou “Militar não
pode: tem permissão, não descansa: relaxa posição, não cumprimenta: presta
continência” – todos, porém, com o objetivo de implantar o espírito de
sujeição à ordem hierárquica e a submissão aos chefes.
A hierarquia em estado bruto se revela na topologia da rede social
fortemente centralizada da organização militar, na qual é proibido multiplicar
caminhos ou abrir atalhos que passem ao largo do (ou bypassem o) superior imediato (por exemplo, o tenente não pode ir direto
ao coronel sem passar pelo capitão e pelo major e violar o caminho único, pular
as estações do percurso compulsório, é falta grave). Tudo isso, como é óbvio,
transborda para outras organizações civis e religiosas hierárquicas.
Algumas ordens religiosas ou religioso-militares levam ao paroxismo a
distribuição dos postos hierárquicos, justificando-os por analogia com
configurações sobre-humanas. Neste caso a perversidade é maior, mas aí já
estamos em um ambiente de programação, para desenvolvedores.
Por último, mas não menos importante, no quartel o jovem “aprenderá” o
patriotismo, um delírio de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a
instalação desse fruto da guerra – na verdade da Paz de Westfalia – chamado
Estado-nação moderno). Não é por acaso que as forças armadas cultuam a
comunidade imaginária chamada de nação, na verdade um domínio do Estado. O
Estado reifica a nação para se justificar como aparato autocrático que
supostamente dela emana e as forças armadas são um dos seus braços (o braço
armado) sem o qual não teria sido possível a ereção dessa organização
constituída contra os outros, contra os inimigos (e para sê-lo basta ser outro,
não é necessário manter qualquer postura beligerante), contra os demais
Estados. O sistema internacional perverso do equilíbrio competitivo (que ainda
não conseguiu ser violado pela democracia) é um pacto entre menos de duas
centenas de Estados-nações para centralizar sociosferas onde vivem 7 bilhões de
pessoas.
O fervor patriótico será o combustível para os governantes se manterem
no poder, para reproduzir o sistema de instituições (estatais) que quer impor
sua legitimidade à sociedade com o fito de torná-la seu dominium (ao modo feudal mesmo) e para continuar produzindo inimizade no mundo. A
cultura do fervor patriótico permite a geração de uma matriz de identidade, uma
identidade baseada na guerra, no estado de guerra, ou na preparação para a
guerra. O argumento básico é o da realpolitik (autocrática, não democrática): se nós não estivermos preparados para a
guerra, se não nos armarmos, seremos invadidos e dominados pelos que estão
preparados e já se armaram (contra nós). É um argumento de gangue.
Por isso que o patriotismo é tão importante para as forças armadas. Sem
ele não há como arregimentar pessoas para compô-las. Juramentos, saudação à
bandeira, exaltação do nacionalismo, dever sagrado, morrer pela pátria... tudo
isso é droga pesada e faz parte da carga ideológica que recebe o recruta,
preparando-o, na maior parte dos casos, não para uma guerra efetiva (quente ou
fria) contra um eventual inimigo externo real, mas para a manutenção de um
estado de guerra interno ou para a preparação para a guerra (tomada paradoxalmente
como uma condição para a paz) que justifique a verticalização do campo social.
Para resumir, no quartel o jovem, mal saído do ensino médio ou apenas
tendo cursado o ensino fundamental, é vítima de uma intervenção rude. Ao que
parece a maior parte dos alistados compulsoriamente consegue se recuperar do
trauma ao completar seu período anual de serviço. Os que decidem seguir a
carreira militar, entretanto, dificilmente se livrarão da impregnação. Em todo
lugar em que forem reproduzirão a matriz que neles foi impressa e que é
composta por conceitos míticos, hierárquicos e autocráticos do mundo épico da
guerra universal e eterna: ordem, hierarquia, comando, controle, disciplina,
obediência, honra, dever, bravura, heroísmo... Educarão seus filhos com esses
“valores”. Tratarão seus colaboradores, em empreendimentos civis em que se
envolverem depois de dar baixa ou de se reformar, como subordinados. Exigirão
obediência, respeito à autoridade e coibirão liberdades que acharem excessivas.
O quartel é o ambiente onde a Matrix realmente existente se desnuda e a
tal ponto que aparece, quase ingenuamente, como caricatura. É tão tosca essa
aparência que chega a se risível, como pode constatar qualquer pessoa
inteligente que observe durante algum tempo a vida na caserna.
Na universidade
Quando vão chegando à chamada maioridade, alguns jovens – em número
crescente, em boa parte dos países – entram na universidade, uma corporação
medieval meritocrática que remanesceu na modernidade e chegou aos dias de hoje
por força do monopólio da outorga de diplomas (já que o suposto monopólio do
conhecimento, que detinha há oito séculos, foi perdido em algum momento do
passado recente com a emersão de uma sociedade-em-rede).
Na universidade o jovem vai aprender, basicamente, meritocracia. A
ideologia autocrática que receberá é a de que os que sabem mais têm o direito
de dirigir os que sabem menos. Mesmo quando não é dito, isso – esse princípio
autocrático platônico que inspirou academias pelo mundo a fora durante mais de
dois milênios – soa como a coisa natural a ser feita.
O jovem será ensinado na universidade que é legítimo erigir tribunais
epistemológicos, baseados num suposto saber sobre o saber, que julgará o que é
científico (e deve ser aceito) e o que não é (que deve então ser rejeitado). Em
alguns casos, sobretudo nos cursos de sociologia e política, ele também será
recrutado para erigir ou fazer parte de alfândegas ideológicas, que deixarão
passar algumas visões e proibirão a entrada de outras (consideradas como
contrabando à luz da ideologia dominante no meio acadêmico).
Na universidade o jovem se integrará à corporação (talvez seja a
primeira experiência de corporação que terá na vida, com exceção, em alguns
casos, da militar, se tiver sido recrutado, mas esta última é mais uma casta).
Começará a ver o mundo a partir da ótica da corporação dos que sabem e
acreditará que tal visão é superior de algum modo às visões das pessoas comuns.
É também na universidade que o jovem – que decidir continuar na vida
acadêmica – entrará em contato inicialmente com a ideia de carreira, ideia que,
no fundo, não passa de um fluxo condicionado para galgar posições de poder,
prestígio e melhor remuneração relativamente aos outros, contra os outros ou
destacando-se dos demais em vez de interagir e se aproximar deles. Na dinâmica
das carreiras a competição é fortemente estimulada.
Por último, na universidade o jovem receberá as justificativas para
defender e reproduzir tudo isso. É lá que ele entrará em contato com as
explicações doutas sobre a realidade social e suas leis, por meio de
formulações que, em grande parte, não são científicas, mas compõem o sistema de
crenças da metafísica influente da hora aceita seus pelos seus professores, que
compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento.
Em suma, na universidade o jovem ainda está na escola e tudo que se
falou sobre a escola vale, mutatis mutandis (e mudando muito pouco), para a universidade. A burocracia sacerdotal do
conhecimento (a hierarquia composta por livre-docentes, pós-doutores, doutores
e mestres) é, na verdade, uma burocracia do ensinamento.
Agora, porém, ele está em uma hierarquia meritocrática que lhe dará
segurança para emitir juízos sobre a organização do mundo, inclusive para
reforçar a necessidade universal da meritocracia e, inevitavelmente, da
hierarquia.
Em alguns países, como os Estados Unidos, existe ainda a tradição das
fraternidades universitárias (nomeadas por combinações de letras gregas, como
Phi, Alpha, Delta, Kappa, Beta, Omega etc.) que têm por objetivo “separar
líderes de perdedores” (15). Essas fraternidades – cujo padrão de
organização, os ritos secretos e a ideologia foram descaradamente copiados da
maçonaria e de outras organizações esotéricas –, cumprem um papel mais
importante do que em geral se avalia na formação do jovem como instalador de
hierarquias, ou seja, como agente da Matrix.
Quando for para uma empresa ou para outra organização qualquer, estatal
ou social, esse jovem universitário levará para lá a convicção de que os cargos
(em especial os de chefia) têm que estar associados a títulos conferidos pela
corporação acadêmica. De algum modo continuará reproduzindo escola em todas
elas.
No trabalho
Bem, então os jovens chegam ao lugar onde as pessoas passam a comemorar
as sextas-feiras e a amaldiçoar as segundas: o trabalho! Só por isso já
deveriam desconfiar que alguma coisa está errada, mas nem notam esse eloquente
sinal (de que cerca de 70% da sua vida não é vivida segundo seus desejos).
Acham natural pagar um tributo durante seis ou cinco dias na semana para poder
viver como querem em um ou dois dias restantes.
Quando o jovem arruma um primeiro emprego e vai para um local de
trabalho, seja em uma empresa ou em outra organização hierárquica do Estado ou
da sociedade civil, o programa-escravo que nele foi instalado afinal é ativado.
De certo modo, foi para isso que ele recebeu tão longa preparação. No trabalho
o contratador reconhece se o programa-escravo está rodando bem no contratado
(quando nenhum contratador tem dificuldade para fazer tal reconhecimento, a
isso se chama, às vezes, de “empregabilidade”).
O programa-escravo é a senha para o jovem ser admitido nos campos de
reprodução da Matrix. Todas as organizações hierárquicas são campos de
reprodução, mas estamos focalizando agora aquelas que substituem a liberdade da
invenção pela prisão do trabalho (rotineiro).
Sim, os locais de trabalho são ambientes de reprodução, não de criação.
Exigem disciplina e obediência para que um processo, produto ou serviço possa
ser replicado com o menor número de erros, em menor tempo e com o menor custo
possível (e a isso já se chamou de qualidade e produtividade).
Para tanto, as empresas e outras organizações de trabalho em geral
aprisionam os corpos dos trabalhadores para possibilitar que os chefes (os
administradores de pessoas) consigam controlá-los e comandá-los de perto. O
pressuposto aqui é o de que o trabalhador não cumprirá o seu papel
voluntariamente e sim, somente, se estiver submetido a um sistema – feitorial
ou quase (na atualidade os feitores trocaram o chicote pelo relógio, o livro de
ponto, o crachá magnético ou o banco de horas) – no qual alguém vigia seus
movimentos para evitar que ele mate o tempo, se desconcentre de suas tarefas e
não consiga “bater as metas” (diminuindo a qualidade e a produtividade).
Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de
repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de ONGs
costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem que dormir e
as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua disposição o tempo todo:
– 24 (horas) X 7 (dias): tum, tum, tum...
Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que as pessoas
empreendam, sejam criativas, construam produtos ou processos inovadores e
realizem coisas maravilhosas e sim que elas trabalhem. Querem trabalho =
repetição e execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não imporiam às
pessoas agendas estranhas (que elas não tiveram oportunidade de coconstruir),
não lhes retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos de
entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus colaboradores (a todos)
as melhores condições para inovar (alugariam, quem sabe, uma casa em uma ilha
paradisíaca, em uma chácara aprazível ou mesmo em um bosque urbano, um horto,
cultivariam jardins... em suma, não organizariam e decorariam seus locais – de
trabalho – de modo tão horrendo, sem cores, sem arte, tudo cinza, quadrado,
como uma prisão mesmo, ou um convento) e, sobretudo, não reduziriam sua
mobilidade: uma dimensão essencial da sua liberdade para criar.
O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus
trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito
empreendedor. Então, para esterilizá-lo, colocam você na pirâmide. Ou no campo
de concentração: na entrada de Auschwitz I lia-se (e ainda se lê em cima do
portão principal) as palavras “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta).
A empresa (lato sensu) é uma máquina e o trabalhador não é o
operador e sim uma peça da máquina. A máquina tem que funcionar para produzir
os processos, produtos e serviços para os quais foi projetada e construída.
Para que a máquina funcione, a peça tem que funcionar como peça, desempenhando
exatamente o papel para o qual foi desenhada.
A empresa hierárquica foi criada para proteger as pessoas da experiência
de empreender. Para nela entrar uma pessoa tem que abandonar seu próprio sonho
em prol do sonho alheio. É mais ou menos assim como se o dono do sonho (ou um
seu preposto) lhe dissesse: “Você não precisa empreender e sim deixar que eu empreenda por você;
desde, é claro, que você abandone o seu sonho e adote o meu, trabalhando para
mim”.
No trabalho (em uma empresa ou em outra organização hierárquica) o jovem
é ensinado a não-criar, a não-inventar. Logo ele aprende que isso pode ser
prejudicial à sua carreira. Será um incômodo para os chefes: sairá dos esquemas
que já foram (por eles) traçados (para ele). Seus próprios colegas de trabalho
reprovarão suas iniciativas, encararão como uma espécie de deslealdade essa
mania de querer ficar “mostrando serviço”. Suas novas ideias para melhorar um
modelo de gestão, processo, produto ou serviço, serão julgadas no meio do
rebanho trabalhador como desejo de “se exibir” para os chefes. Um rebanho de
empregados é mais ou menos assim como aquelas hordas de seres infectados por
algum vírus – muito comuns em filmes de terror (ou em filmes-B de ficção
científica) – que perseguem e tentam infectar qualquer um que não esteja
infectado.
No trabalho o jovem aprende a ser medíocre, a se conformar em seguir a
rotina, a fazer como todo mundo faz em troca de ter a possibilidade de, nos 30%
do tempo de vida que lhe sobra, assistir ao jogo, namorar, ir à praia ou ao
cinema, confraternizar com os amigos num churrasco dominical ou no barzinho, se
dedicar a um esporte ou a um hobby, viajar no final de semana... Na verdade ele aprenderá a suportar o
jugo, sofrer a fadiga, divagando, sonhando com o que fará depois, enquanto faz
de conta de que está concentrado no que está fazendo agora. Realmente é uma
vida de escravo que só é aceitável por uma pessoa em quem foi carregado um...
programa-escravo (16). Em uma empresa hierárquica o jovem aprenderá que não é o
seu trabalho que será remunerado (pelo que vale) e sim a sua disposição de
ficar à disposição dos chefes ou dos donos para fazer qualquer trabalho (que
eles querem que ele faça).
Tudo está organizado para que o jovem não veja que ele é o empreendedor,
não a empresa. Para que ele não veja que a empresa é um meio para que ele possa
empreender, não uma feitoria (por acaso ele é um escravo?), uma penitenciária
onde ele tenha que pagar uma pena oito horas por dia (como se tivesse sido
condenado por algum crime), quase todos os dias da semana (sempre aborrecido e
ansioso, como os escolares, não vendo a hora em que vai tocar a sineta); muito
menos um ídolo a que ele deva adorar. Se ele não vê, então é sinal de que o
processo de impregnação está concluído, o programa foi carregado com sucesso,
está totalmente instalado e rodando bem.
O jovem agora está perfeitamente integrado à Matrix e já pode ser
considerado uma pessoa adulta e responsável.
Família, escola, igreja, organizações juvenis, partido, quartel,
universidade, empresa e organizações (estatais ou sociais) de trabalho – todas
essas instituições carregam o programa, as atualizações do programa (ou suas
diferentes versões). É quase-impossível escapar de todas elas. E o que há de
comum a todas elas, aparentemente tão diferentes, muitas com objetivos díspares
entre si e até opostos? O que há de comum é a hierarquia, o padrão mais
centralizado do que distribuído de organização, com tudo que isso implica: o
modelo de gestão baseado em comando-e-controle, a existência de monolideranças,
a exigência de obediência (ou sub-ordenação). Restringir a liberdade e
desestimular a cooperação parece ser o objetivo.
As pessoas da Matrix reagirão a tudo isso dizendo assim: “– Mas
poderia ser de outro jeito? Se não organizássemos as pessoas em sistemas
hierárquicos elas não estariam ainda na idade da pedra, vivendo em bandos,
errantes, consumidas pela sobrevivência e sua vida não seria – como escreveu Hobbes (1651) – ‘solitária, miserável, sórdida, brutal e curta’?” (17).
Essas objeções, obviamente, são sugeridas pelo programa hierárquico que
nelas foi carregado. Ao formulá-las as pessoas estão apenas dublando o ser
típico, o indivíduo-padrão da Matrix realmente existente e se convertendo em
pessoas privadas, como veremos a seguir.
PARTE 2 | É POSSÍVEL SAIR DA MATRIX?
ANTES DE QUALQUER COISA precisamos saber o que significa sair da Matrix.
A Matrix realmente existente não é uma realidade externa aos emaranhados onde
estamos (e somos – como somos, nós, os humanos). Ela é um campo social
deformado pela hierarquia. Ela está no meio de nós em um duplo sentido: está entre nós (nas relações que tecemos com as outras pessoas) e está também dentro de nós (de vez que introjetamos ou espelhamos as configurações do emaranhado
social em que existimos propriamente como pessoas).
Deixar de reproduzir essas configurações (hierárquicas) nas nossas
relações com as outras pessoas é o primeiro passo para se libertar da Matrix.
Esse parece ser o passo decisivo para começar a desintrojetar as deformações e
não o oposto, como frequentemente se acredita. Há uma crença generalizada – de
fundo hierárquico – segundo a qual primeiro a pessoa tem que se transformar
internamente (como indivíduo) para depois mudar as configurações (sociais) em
que está imersa. No entanto, ao que tudo indica, mudanças de visões, concepções
e ideias não mudam comportamentos: somente comportamentos mudam comportamentos.
A Matrix não se reproduz em função das nossas crenças, convicções e valores e
sim em função de nossos comportamentos, da maneira como nos relacionamos com os
outros. Se não obedecemos (a alguém) e não exigimos obediência (de ninguém) não
há hierarquia. Bastaria, no fundo, abrir mão de mandar nos outros, ou seja, de
comandá-los e controlá-los. Simples assim.
Mandar e obedecer, entretanto, não é desejar fazer isso e sim agir para
que efetivamente se realize o mando e a obediência. Ninguém conseguirá fazer
isso se não puder selecionar fluxos, eliminando nodos, conexões ou atalhos na
rede social.
Nenhum indivíduo sozinho consegue fazer isso. É necessário ter uma rede
centralizada de pessoas para erigir uma hierarquia (na verdade, a hierarquia já
é a centralização da rede). Para sair da Matrix uma pessoa precisa alterar a
topologia das redes sociais a que está conectada no sentido de mais
distribuição (ou menos centralização). Não adianta, porém, apenas desejar,
falar ou escrever sobre isso. É necessário mudar as configurações da rede. Não
é de um novo software que se trata e sim da mudança de hardware.
Escapar da Matrix é como construir um refúgio, um abrigo protegido da
influência do campo social deformado pela hierarquia (ou pela topologia da rede
mais centralizada do que distribuída). Esse resultado será temporário – os
refúgios ou abrigos são como bolhas – e, assim, o esforço de escapar deverá ser
intermitente. Mais cedo ou mais tarde a influência do ambiente hierárquico mais
geral acabará estourando a bolha. E outra bolha deverá então ser aberta (18).
As bolhas (os refúgios ou abrigos da influência da Matrix) são apenas
redes mais distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for uma
rede menos influência sofrerá da Matrix, o que é apenas outra maneira de dizer
– o óbvio – que menos centralizada ela será (ou menos hierarquizado será o
ambiente configurado por ela).
Para sair da Matrix você tem que hackear as instituições que
o colocaram na Matrix (quer dizer, que instalaram o programa dentro de você): a
família, a escola, a igreja, as organizações hierárquicas (incluindo as
entidades da chamada sociedade civil e as corporações e os partidos), o quartel,
a universidade e as organizações empresariais, governamentais e sociais que
empregam pessoas em troca de remuneração ou agenciam seu trabalho.
Todavia, embora necessária, essa medida não é suficiente. Não basta
cortar (to hack) ou quebrar (to crack) o código dessas
instituições (desprogramando-as): você tem que reprogramá-las, ou melhor,
programar o que elas seriam sem hierarquia (e isso não é apenas hacking, mas netweaving), mas não genericamente e sim para você e para um emaranhado onde você
esteja glocalmente inserido. Para tanto, você precisa tornar-se uma pessoa
comum.
No filme The Matrix, Neo (Thomas Anderson) é
um hacker. Mas um hacker ainda é uma pessoa
incomum e, como tal, não pode sair da Matrix. Um hacker é uma pessoa
diferenciada, uma espécie de “sionista digital”, um membro de uma
“décima-terceira tribo”, de uma elite cujos membros são capazes de se
reconhecer com base nos seus atributos diferenciais, quer dizer, naquilo que se
destacam (e não do que os aproximam) dos outros (19).
Neo é um hacker quando seria
preciso que ele fosse um netweaver para sair da Matrix. E aí não seria o escolhido (the chosen one).
Seria uma pessoa comum, escolhida juntamente com todos os que estão no seu
emaranhado quando esse cluster fosse colhido pelo
fluxo (quer dizer, quando a configuração da nuvem de conexões que o envolve se
tornasse mais distribuída do que centralizada). Todos somos escolhidos quando
colhidos pelo fluxo.
Sair da Matrix é se abandonar ao fluxo interativo, deixá-lo pervadir os
mundos que configuramos em nossa convivência, perfurar os muros que erigimos “contra
os ventos, as marés e as estrelas”... (20).
Para sair da Matrix
Para sair da Matrix você precisa ser desensinado. Não há outro jeito.
Você está na Matrix porque foi ensinado, quer dizer, programado. Agora precisa
ser desprogramado. Não basta, porém. Você precisa também ser reprogramado.
Tanto a desprogramação quanto a reprogramação devem ser feitas por você e pelas
outras pessoas que interagem com você no seu emaranhado. Mas desprogramação e
reprogramação não são ensino e sim livre-aprendizagem e comum aprendizagem.
Toda aprendizagem autodidata ou alterdidata é desensino.
O desensino fundamental é o da hierarquia. Desaprender hierarquia, sim,
mas a palavra ‘desaprender’ é usada aqui em um sentido oposto ao da
aprendizagem heterodidata, quer dizer, quando você aprende não o que você quer
aprender e sim o que querem que você aprenda (ou seja, ensino). Nesse sentido,
desaprender hierarquia é aprender a desobedecer (ou a desaprender a mandar, o
que é a mesma coisa).
Na Matrix realmente existente, o ensino da obediência é constante.
Começa na família, aprofunda-se na escola, fundamenta-se com razões
transcendentes na igreja, instrumentaliza-se nas organizações sociais e
políticas, exacerba-se no quartel, racionaliza-se na universidade e
consolida-se no trabalho.
Para desprogramar aquela parte do programa (sua camada mais profunda)
que você recebeu na família é necessário deixar de replicar família em todo
lugar, resistindo à tentação de pertencer (ou formar) um grupo proprietário ou
fechado (21), parando de projetar os pais nos chefes e autoridades em geral
(22) e – o mais importante – reaprendendo a brincar (23). Mas a reprogramação
só virá quando você passar a conviver em rede (distribuída) ou viver em
comunidade (aberta) com seus amigos (independentemente do grau de parentesco
que tenham com você), sem qualquer outro propósito do que o de se comprazer na
fruição da convivência com eles.
Para desprogramar a escolarização de que você foi vítima você tem que
renunciar a ensinar os outros. Isso é mais difícil do que parece porque não se
trata apenas de não ser professor (a maioria das pessoas não é) e sim de não
reproduzir o comportamento docente lato sensu, em todas as suas formas. Não querer conduzir os outros, “fazer a
cabeça” das outras pessoas – nem mesmo a pretexto de facilitar o seu processo
de aprendizagem ou de dar oportunidades para que elas “se incluam” (onde
mesmo?) – requer uma atenção constante. A reprogramação virá quando você passar
a atuar como catalisador de processos de aprendizagem em comunidades livres de
buscadores e polinizadores, estruturadas em rede.
Para quebrar o script que você talvez
tenha recebido na igreja, você tem que abrir mão de se reunir exclusivamente em clusters dos que professam a mesma fé (ou crença) e de acreditar que existe um
(único) caminho para a verdade (24). Não é necessário que você abandone a sua
espiritualidade ou a sua vida mística, nem mesmo o seu deus (desde que você não
queira impô-lo aos outros, separando fiéis de infiéis). Esse processo não se
completará enquanto você erigir (ou aderir a) ordens sacerdotais que se
proclamam o único caminho, a única porta, a única esperança de salvação, ou
seja, enquanto você reeditar (ou pertencer a) alguma dessas armadilhas de
fluxos construídas para arrebanhar ovelhas e apascentá-las (chamadas de
igrejas) (25). A reprogramação virá quando você – se for o caso e se você
quiser fazer isso – começar a compartilhar formas pós-religiosas de
espiritualidade com outras pessoas em novas ecclesias (como “assembleias de amantes”), como redes de buscadores que se dispõem
a celebrar suas amorosidades e a polinizar mutuamente os modos pelos quais
vivem sua mística ou sua espiritualidade.
Para desprogramar o que você recebeu nas organizações sociais e
políticas, você tem que abrir mão do conservadorismo (que quer congelar e
reproduzir configurações pretéritas resistindo ao fluxo interativo) e do
transformacionismo (que quer converter as pessoas no que elas não são para
conduzi-las para um porvir radiante que se instalaria com a transformação da
sociedade no que ela não é por meio da realização de alguma utopia autoritária
capaz de instalar uma nova ordem) (26).
Para tanto, bastaria aderir à democracia, mas como essa palavra não é
tomada no sentido original de desconstituição de autocracia e sim,
frequentemente, confundida com modelo de governo ou forma política de
administração do Estado, seu emprego puro e simples (sem adjetivos) – além de
induzir à confusão com o sistema representativo ou eleitoral – não é muito
elucidativo. A reprogramação virá quando você – desistindo das noções
regressivas de patriotismo e nacionalismo e virando um cidadão transnacional de
sua glocalidade – passar a se relacionar em redes de interação social e
política (pública) em vizinhanças e setores de atividade, em comunidades que
exercitem a democracia cooperativa na base da sociedade e no cotidiano das
pessoas (que convivem com você) (27).
Para desprogramar o que você eventualmente recebeu no quartel ou nas
organizações militares em geral (inclusive nas organizações político-militares,
como certos partidos; ou religioso-militares, como certas igrejas, seitas e
ordens) você tem que renunciar à guerra e à construção de inimigos. Inimigos
são criados pela luta contra alguém. Mas não há uma boa luta, não há um bom
combate, não há uma guerra justa do bem contra o mal. Assim como o justo
monarca legitima as autocracias, o “guerreiro da luz”, envolvido em permanente
combate contra o “guerreiro das trevas”, legitima a existência da guerra (e,
consequentemente, o emprego e a fabricação da arma). A guerra (ou a política
praticada como arte da guerra) é, em si, o mal. O único inimigo que existe é o
criador de inimigos. Se você lutar, você será o inimigo. A reprogramação virá
quando você não lutar. Se você não lutar, não há luta.
Para desprogramar o que você recebeu na universidade você tem que
renunciar à meritocracia, abrindo mão de erigir (ou validar) tribunais
epistemológicos capazes de aprovar (ou reprovar) pessoas com base em
verificações heterodidáticas do conhecimento ensinado. A reprogramação virá
quando você passar a avaliar a árvore pelos seus frutos e não pelos
certificados emitidos por alguma corporação de botânicos (28).
Para desprogramar o que você recebeu nas empresas e nos outros locais de
trabalho, você tem que aprender a co-laborar (trabalhar com os outros), ou
seja, desaprender a trabalhar para os outros e de colocar outras pessoas
trabalhando para você. A reprogramação virá quando você for um empreendedor
interdependente, quer dizer, um coempreendedor, um cocriador de ideias e um
corealizador de projetos em empreendimentos compartilhados (29).
Aprender a desobedecer (ou desaprender a mandar); resistir à tentação de
pertencer a um grupo, parar de projetar os pais nos chefes e autoridades e
reaprender a brincar; catalisar processos de livre aprendizagem; compartilhar
horizontalmente sua espiritualidade e celebrar suas amorosidades; exercitar a
democracia cooperativa e não construir inimigos; avaliar as árvores pelos seus
frutos deslegitimando os tribunais epistemológicos; e cocriar e coempreender.
Parece difícil, mas ninguém nunca disse que seria fácil. No entanto, não é
necessário que ninguém faça todas essas coisas de uma vez.
O programa-hierárquico que você está hackeando é o mesmo em todas essas armadilhas de fluxos que são a família, a
escola, a igreja, as organizações sociais e políticas, o quartel, a
universidade e as empresas e outras instituições hierárquicas do trabalho.
Basta mexer no código de uma dessas instituições para alterar a programação das
sociedades de controle. Você pode escolher por onde quer começar. Mas começar
não é terminar. Para reprogramar sociosferas glocais não basta hackear, é necessário também fazer netweaving.
Em suma, tudo isso pode ser resumido em uma palavra: rede. Redes devem
ser encaradas, nesse sentido, como movimentos de desconstituição de hierarquias
e como ambientes de constituição de outros mundos, protegidos – pelo menos
temporariamente – da influência da Matrix realmente existente. Seria uma tarefa
impossível para um indivíduo. Mas você não é um indivíduo como a Matrix quer
que você acredite (porque a Matrix é uma fábrica de indivíduos). É necessário
abandonar a ilusão de que você é um indivíduo e tornar-se pessoa. Pessoa comum.
Tornar-se uma pessoa comum
Quando uma pessoa se relaciona com outras pessoas em uma rede mais
distribuída do que centralizada ela vai aprendendo a se tornar uma pessoa
comum. Mas na Matrix realmente existente as pessoas, em geral, não são pessoas
comuns (no sentido de commons) e sim pessoas privadas (fechadas à interação com o
outro-imprevisível). A Matrix é uma espécie de fábrica de pessoas privadas.
As pessoas privadas poderiam virar pessoas comuns a não ser enquanto não
almejassem ser pessoas incomuns. Mas imersas numa corrente vertical que tudo
arrasta para cima, as pessoas querem ser incomuns (e se comportam
condizentemente com tal desejo). Por isso se fecham à interação e, então, não
podem mais ser pessoas comuns.
Sim, pessoa comum. Este talvez seja o conceito de mais difícil apreensão
em virtude de sua desconcertante simplicidade. Ele surgiu a partir da
constatação de que, em estruturas hierárquicas, não somos pessoas comuns na
medida em que lutamos para ser pessoas incomuns, para nos destacar dos
semelhantes (em vez de nos aproximar deles).
O termo ‘comum’ tem aqui o sentido de commons, de bem comum, de algo compartilhável por uma comunidade (e não de
ordinário, normal ou não notável, nem de medíocre, como em geral se atribui
pejorativamente). Assim, pessoa comum é aquela que mantém as mesmas condições
de compartilhamento das outras pessoas do seu emaranhado, embora cada uma seja,
nas suas particularidades, totalmente diferenciada, sempre unique.
A pessoa comum é a que compartilha (ela é realmente o que compartilha,
ao se deixar varrer pelo sopro, ao ser permeável ao fluxo interativo) e não
aquela que alcançou o sucesso em virtude de suas características herdadas (do
“sangue” ou do “berço”) ou adquiridas pelos esforços que fez para subir na vida
ou para progredir ou evoluir em seu caminho espiritual. Ela é alguém que logrou
viver a sua convivência, que conseguiu antecipar a plenitude do com-viver ou do
viver em rede prefigurando um simbionte social.
As pessoas comuns não são santos ou heróis fracassados. Ao contrário,
santos e heróis fracassaram ao não conseguirem ser pessoas comuns (30). Santos
e heróis são pessoas incomuns, resultados de escapadas da humanidade,
tentativas de transformação individual por fora do fluxo interativo e são,
nesse sentido, seres humanos fugidos da interação e não o contrário, como
tentou inculcar a cultura hierárquica, segundo a qual pessoas comuns não são
boas o bastante, como se fossem santos ou heróis fracassados ou, simplesmente,
perdedores (loosers, como gosta de dizer a cultura americana, que associa
sucesso à virtude) – porque não conseguiram vencer acumulando fortuna, poder ou
muitos títulos. O mesmo se pode dizer das chamadas celebridades que, de um
ponto de vista coletivo ou da rede, são sintomas de uma patologia da interação
(31).
Quando questionadas, as pessoas que acreditam nesse tipo de coisa – e
são muitas – costumam dizer que a vida é assim mesmo. É uma luta. E que é preciso vencer
na vida. Mas vencer quem? Por acaso estamos em uma guerra? O problema é que
estamos. A Matrix só existe porque as pessoas se comportam como se estivessem
em uma guerra.
É possível sair da Matrix, sim, mas é difícil. Porque não é fácil ser
uma pessoa comum, ao contrário do que parece. Na Matrix somos induzidos a
conquistar algum diferencial para nos destacarmos das pessoas comuns. Quando
interagimos com alguém em qualquer ambiente hierárquico somos avaliados por
esses diferenciais e começamos então a cultivá-los. Como reflexo dos fluxos
verticais que passamos a valorizar, nossa vida também se verticaliza. É como se
importássemos a anisotropia gerada no campo social pela hierarquia. Nessa ânsia
de subir, começamos a imitar os de cima e a desprezar os de baixo. Ao fazer
isso, porém, replicamos a Matrix.
Razão tinha James Joyce (1902) ao escrever, em carta a Augusta Gregory,
que “não há heresia ou filosofia que aborreça mais à igreja do que um ser
humano” (32). A igreja é um
exemplo de como Matrix pode se tornar realmente existente. Não há nada mais
perigoso para a Matrix do que uma pessoa comum. Ela é mais perigosa,
infinitamente mais perigosa, do que um santo ou um herói. Esse é o motivo do
discurso religioso de desvalorização da pessoa comum em prol das pessoas
incomuns (como os santos e aqueles que receberam a unção divina por meio da
intermediação da hierarquia: os sacerdotes que foram sagrados como membros
plenamente docentes por meio de operações rituais praticadas por outros
sacerdotes de mesmo status hierárquico:
metástase).
Examinar o comportamento das pessoas privadas é uma maneira de desvelar
a Matrix realmente existente. Elas querem ser poderosas, ricas, muito
tituladas, famosas. Em geral, não são nada disso, mas se comportam segundo a
ilusão (não declarada, muitas vezes inconsciente) de que poderiam ser. Na
verdade há um desejo de imitar as pessoas poderosas, ricas, muito tituladas ou
famosas. E aí se fecham, sendo seletivas nos relacionamentos (o que – do ponto
de vista da rede – constitui o fracasso de todas as chamadas “pessoas de
sucesso”) (33).
Se você quer “fazer sucesso”, vá em frente. Mais saiba que sucesso é um
indicador de adequação à Matrix realmente existente.
Mas se você não quer se adequar, se você quer ser um revolucionário ou
um reformador das instituições, se você quer salvar a família, melhorar a
escola, reformar a igreja, modernizar a empresa hierárquica, democratizar as
instituições do Estado tornando-as mais participativas, fique tranquilo. Saboreie
com Cypher (34) aquele suculento bife virtual. E esqueça que você continuará na
Matrix. Será mais fácil suportar.
Notas e referências
(1) Cf. ZIZEK, Slajov (2002). Matrix: ou os dois lados da perversão, in
IRWIN, William org. (2002). Matrix:
Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Madras, 2003.
(2) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Você é o inimigo. Disponível em
(3) A ideia de campo social – à semelhança de um campo de forças (meio
pelo qual uma força comunica sua influência) – foi aventada em 2007 e publicada
no livro Novas Visões (2008) para descrever o efeito da topologia da rede
social sobre as pessoas (assim como num campo físico pode-se determinar a
intensidade e a direção da força a cada ponto). Em uma topologia distribuída o
campo social manteria as mesmas propriedades em todas as direções. Uma
topologia centralizada introduz uma anisotropia (privilegiando certas direções
ou condicionando o fluxo a passar por elas em detrimento de outras direções
possíveis). Essa anisotropia – introduzida pela hierarquia (ou seja, pela
centralização) – é encarada então como uma deformação no campo social. Em geral
isso é descrito como uma verticalização do campo (privilegiando-se a direção
vertical ou os caminhos de subida e de descida). Na presença de organizações
hierárquicas o campo social se deforma, não apenas no seu interior, mas também
em seu entorno. O conceito (ou a imagem) não tem propósitos analíticos e sim
demonstrativos (ou ilustrativos): pessoas situadas num campo social deformado
tendem a se comportar de maneira condizente com os caminhos disponíveis
independentemente de suas características individuais: por exemplo, num campo
verticalizado tenderá a privilegiar a direção vertical, disputará com outras
pessoas os caminhos de subida (competição) em vez de estabelecer relações
horizontais com elas (colaboração). Esta visão é congruente com a hipótese de
que a colaboração é um atributo da maneira como os seres humanos se organizam e
não uma função de suas características individuais distintivas (como seus
princípios, visões e valores). Cf. FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes:
Novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o
mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.
(4) Cf. THOMPSON, William Irwin org. (1987). Gaia: uma teoria do
conhecimento. São Paulo: Gaia-Global, 1990.
(5) BARAN, Paul (1964). On distributed communications: I. Introduction to distributed
communications networks. (Memorandum RM-3420-PR August 1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.
(6) O grau de distribuição (ou de centralização) de uma rede depende do
número de conexões (uma função do número de nodos), do número de nodos
desconectados com a eliminação do nodo mais conectado e do número de conexões
eliminadas com a eliminação do nodo mais conectado. Cf. FRANCO, Augusto (2009):
O poder nas redes sociais. Disponível em
(7) No universo ficcional de Star Trek (The Next Generation) os Borgs são uma “raça” alienígena de
ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a injeção
de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram sua anatomia
e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades mentais e físicas.
Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações, aos
quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a seguinte
litania: “Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.
Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa. Resistir é inútil”. Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de
distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos
substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura fortemente
centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico absoluto), a única que
pode pensar livremente (se é que isso é possível sem o conversar). Seus
cérebros são conectados a uma mente coletiva (a Coletividade Borg) controlada
por um hubcentral (Unimatrix Um). O objetivo declarado do povo Borg (que só é um
povo naquele particular sentido original da palavra latina ‘populus’ =
“contingente de tropas”) é “aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao
caos”. Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo
modo qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização
centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg. Nota extraída do
livro FRANCO, Augusto (2011). Fluzz: vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola-de-Redes,
2011.
(8) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego:
fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia.
Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. (Existe tradução
brasileira: Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004).
(9) BLACK, Bob (1985). The Abolition of Work and Other Essays. Port Townsend: Loompanics Unlimited,
1986. Uma tradução em português do manifesto “A abolição do trabalho” está
disponível em
(10) SAINT-EXUPERY, Antoine (1939). Terra dos homens. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2006.
(11) Considerando a história evolutiva do homo sapiens, as pessoas não têm razões para se guiar pela ideia de que existe uma
(única) crença verdadeira e a adotar práticas de exclusão e negação dos que têm
lá suas próprias crenças diferentes e não querem abjurá-las e se converter às
crenças de outro grupo para serem aceitas e validadas por tal grupo (que é o
que caracteriza a prática religiosa). Isso teria reduzido drasticamente as
possibilidades de interação entre grupos de origens diferentes, com óbvios
impactos negativos para a sua sobrevivência. Se os seres humanos tivessem
seguido diretivas como essa não teriam acontecido as trocas e não teria
florescido o comércio. Pois a adoção de tal orientação leva, inexoravelmente, à
formação de grupos fechados de crentes, induz ao enclausuramento em clusters dos que compartilham a mesma fé (ou melhor, a mesma crença) sem atalhos
para os outros clusters (compostos pelos infiéis). Mas foi isso que fizeram as religiões durante
milênios (produzindo inimizade no mundo e um sem número de guerras) e ainda
continuam fazendo, se bem que em menor escala (pois em mundos altamente
conectados é quase impossível manter esse comportamento), com exceção, talvez,
de certas correntes do islamismo (com resultados nefastos, bem conhecidos por
todos na atualidade).
(12) Cf. MATURANA, Humberto. Op. cit.
(13) No limite até armas de guerra podem ser benzidas (como já fez certo
hierarca máximo de uma igreja – tido por sua religião como infalível – em
meados do século passado).
(14) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(15) Cf. BLUMENTHAL, Matthew (2007). Fraternidade separa líderes de
perdedores nos EUA. Folha de São Paulo: Caderno Cotidiano, 14 de outubro de
2007. Disponível em
(16) Não é a toa que o conceito de trabalho tenha surgido na antiga
Mesopotâmia com a conotação de sofrimento. Aliás, na mitogonia suméria, segundo
a “Epopéia da Criação” – que contém alguns dos relatos mais antigos que conhecemos
de uma cultura sacerdotal, hierárquica e autocrática – o homem teria sido
criado pelos deuses para “trabalhar para sempre e liberar os deuses...”
ou suportar o jugo, sofrer a fadiga. Já foi criado como trabalhador – um ser
inferior, escravo dos deuses – para propiciar a liberdade dos deuses, que
passaram então a exigir dos homens adoração. Adoração significava,
originalmente, segundo os relatos bíblicos, trabalhar para os seres superiores:
trabalhar para uma deidade e essa deidade era simultaneamente “senhor”,
“soberano”, “rei”, “governante” e “dono” – enfim, superior. O homem antigo dos
sistemas hierárquico-autocráticos não propriamente adorava seus deuses, mas
temia-os e trabalhava para eles. E, é claro, para seus intermediários humanos:
os sacerdotes. Cf. Epopéia da Criação – Enuma Elish (ou Enûma Eliš) é o mito de criação babilônico. Ele foi descoberto por Austen Henry
Layard em 1849 (em forma fragmentada) nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal
em Nínive (Mossul, Iraque), e publicado por George Smith em 1876. Cf. SMITH, George (1876). The Chaldean Account of Genesis. London: s/ed., 1876. Eis a passagem citada do Enuma Elish: “Ele criou o homem (e a
mulher), seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar os deuses de outras
cargas...”. Uma versão duvidosa em português está disponível no link:
(17) Cf. HOBBES, T. Op. cit.
(18) Cf. FRANCO, Augusto (2012). Small Bangs: instruções para construir
uma bomba criativa. Disponível em
(19) Cf. FRANCO, Augusto (2011). Netweaver Howto (Como se tornar um
netweaver). Disponível em
(20) SAINT-EXUPERY, A. Op. cit.
(21) Cf. FRANCO, Augusto (2011). Resista à tentação de pertencer a um
grupo. Disponível em
(22) Uma medida para desprogramar o software que foi instalado em você pela família e parar de projetar seus pais nos
chefes e autoridades em geral. A melhor maneira de fazer isso é, obviamente,
não ter chefes. Mas mesmo isso ainda não basta. É preciso também não ser chefe
de ninguém. E nada de respeitar especialmente as autoridades. Todas as pessoas
devem ser respeitadas: como são, iguais a você. Uma criança deve ser tão
respeitada em sua humanidade como um idoso. A pessoa idosa não deve ser mais
respeitada do que as de menos idade porque poderia ser seu pai ou sua mãe, como
correntemente se apregoa. A pessoa rica, poderosa, sábia ou famosa não deve ser
reverenciada de modo diferencial, como frequentemente ocorre. Não existe
ninguém mais importante do que você. Não é necessário apenas acreditar nisso,
mas se comportar coerentemente com tal convicção.
(23) Talvez a principal medida para reprogramar o que a família embutiu
em você – quando quis educá-lo, ensiná-lo, formatá-lo, prepará-lo para ser um
adulto com tais ou quais características pré-concebidas – é reaprender a
brincar. Não importa a sua idade, é sempre possível brincar, interagir com
outras pessoas sem resultados esperados, sem propósito outro do que o prazer, a
fruição do compartilhamento. Se você acha impossível fazer isso, então seu caso
está perdido. Só é possível sair da Matrix tornando-se criança novamente.
(24) Não é que não possa existir uma verdade (para você). O fundamental
aqui é abrir mão da ideia de que existe um caminho para a verdade que possa ser
revelado para os outros por uma organização. No espírito daquela observação que
Jiddu Krishnamurti fez em 21 de outubro de 1980: “A verdade é uma terra sem caminho. O homem não chegará a ela através de
organização alguma, de qualquer crença, de nenhum dogma, de nenhum sacerdote ou
mesmo um ritual, e nem através de conhecimento filosófico ou da técnica
psicológica. Ele tem que descobri-la através do espelho das relações...” Cf. KRISHNAMURTI, Jiddu (1980). Diponível em
(25) O Bhagwan Shree Rajneesh (mais conhecido como Osho) decifrou o
enigma quando identificou os deuses das religiões como programas
verticalizadores: “Não tenho nenhum Deus; desse modo, não tenho nenhum programa para você
no qual você possa ser transformado em um escravo”. Aliás, Osho, assim como Krishnamurti e o Tao – e inclusive o Zen, quando
desligado das aderências religiosas do budismo, atuando como um programa
antivírus, ou um game de desconstituição
de certezas – podem ser de muita ajuda no esforço de sair da Matrix.
(26) Chamamos de transformacionismo à ideologia perversa segundo a qual
os seres humanos vêm com defeitos que devem ser consertados por alguma
instituição hierárquica (seja uma escola, uma igreja, uma organização militar,
uma corporação, um partido, um Estado ou algum tipo de ordem espiritual, seita,
sociedade ou fraternidade). Essas instituições seriam, por um lado, espécies de
reformatórios para educar as pessoas, quer dizer, ensiná-las, adestrá-las,
domá-las; ou, por outro, ambientes para ensejar o seu desenvolvimento interior,
colocando-as no caminho da sua evolução mental ou espiritual. A perversão
transformacionista adquiriu na modernidade outras formas, mais explicitamente
políticas, a partir da crença de que a transformação das pessoas (no que elas
não são) viria com a transformação da sociedade (no que ela não é, por meio da
realização de alguma utopia autoritária que afinal “colocaria ordem na casa”).
Essa transformação seria promovida pela intervenção consciente de uma
militância política, social ou ambiental – sempre aglomerada em organizações
hierárquicas – à qual caberia transfundir sua consciência para as massas
ignorantes conduzindo-as em direção a um porvir radiante. Esta ideologia é
desconstituída com a aceitação de que devemos ser o que somos e não o que não
somos (não há nada de errado conosco), de que não há nenhum lugar para
ir a não ser aquele para o qual iremos (e que não pode ser conhecido de antemão
por alguma organização de sábios, de seres mais conscientes ou mais evoluídos,
possuidores de algum conhecimento superior dos mecanismos imanentes ou
transcendentes à história) e de que as redes sociais distribuídas (as pessoas
interagindo livremente) não são um instrumento para fazer a mudança mas já são
a própria mudança.
(27) Para uma visão da democracia cooperativa cf. FRANCO, Augusto
(2011). Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Disponível em
(28) Cf. FRANCO, Augusto & LESSA, Nilton (2011). Multiversidade : da
Universidade dos anos 1000 à Multiversidade nos anos 2000. Disponível em
(29) Cf. FRANCO, Augusto (2012). Cocriação: reinventando o conceito.
Disponível em
(30) George Orwell (1948) nas suas inquietantes Reflexões sobre Gandhi
elaborou, talvez, a mais profunda (e corajosa) crítica à disciplina religiosa
tomando como exemplo a “disciplina que Gandhi impôs a si mesmo e que –
embora ele possa não insistir com seus seguidores que observem cada detalhe –
acreditava ser indispensável se quiséssemos servir a Deus ou à humanidade. Em
primeiro lugar, não comer carne e, se possível, nenhum alimento animal sob
qualquer forma... Nada de bebida alcoólica ou tabaco, nenhum tempero ou
condimento, mesmo do tipo vegetal... Em segundo lugar, se possível, nada de
relação sexual... E, por fim – este o ponto principal –, para quem busca a
bondade não deve haver quaisquer amizades íntimas e amores exclusivos”.
Então vem a crítica cortante de Orwell: “O essencial no fato de sermos humanos é que não buscamos a perfeição, é
que às vezes estamos propensos a cometer pecados em nome da lealdade, é que não
assumimos o ascetismo a ponto de tornar impossível uma amizade, é que no fim
estamos preparados para ser derrotados e fragmentados pela vida, que é o preço
inevitável de fixarmos nosso amor em outros indivíduos humanos. Sem dúvida,
bebidas alcoólicas, tabaco etc. são coisas que um santo deve evitar, mas santidade também é algo que os seres humanos devem evitar. Para isso
há uma réplica óbvia, porém temos de ser cautelosos em fazê-la. Nesta época
dominada por iogues, supõe-se com demasiada pressa não só que o “desapego” é
melhor do que a aceitação total da vida terrena como também que o homem comum
só a rejeita porque ela é muito difícil: em outras palavras, que o ser humano
mediano é um santo fracassado. É duvidoso que isso seja verdade. Muitas pessoas
não desejam sinceramente ser santas, e é provável que as que alcancem a
santidade, ou que a ela aspirem, jamais tenham sentido muita tentação de ser
seres humanos”. Ter percebido que esse “homem comum”, esse “ser humano
mediano” não é “um santo fracassado” foi a grande sacada de Orwell,
desmascarando o que nos impuseram as igrejas ao colocarem como ideal a
superação do humano, o seu aperfeiçoamento, a sua “espiritualização”, como se
houvesse alguma coisa errada com os que vivem sua vida e sua convivência sem se
submeterem a alguma disciplina religiosa, ascética, mesmo quando voltada ao bem
da humanidade (como os santos, os bodisatvas e os mahatmas – que, talvez, não
tenham conseguido chegar a serem pessoas comuns). Cf. ORWELL, George (1948).
Reflexões sobre Gandhi in ORWELL, George
(1984). Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
(31) Psicólogos, psicanalistas e psiquiatras que tratam das patologias
incidentes em quem se mantém nessa condição [de celebridade] têm muito a contar
sobre a perturbação da personalidade que pode levar, em determinadas
circunstâncias, quando combinada com outros fatores, ao surgimento de pulsões
autodestrutivas... Mesmo que tais consequências extremas não aconteçam, há
sempre um isolamento (aquele cruel isolamento de que reclamam todos os grandes
líderes hierárquicos e os condutores de rebanhos), causado pelo represamento de
fluzz. Em certa medida, em sociedades e organizações hierárquicas viramos
(todos nós, não apenas as celebridades) seres da aparência, deformados pelo broadcasting, usando nossas antenas quase que somente para difundir as
características de nossa persona (como queremos que
os outros nos vejam) e não para captar outros padrões de convivência. É assim
que não desenvolvemos nossas características-hub e, em consequência, perdemos interatividade, sobretudo porque não
queremos nos manter abertos à interação com o outro imprevisível por medo de
nos confundirmos com qualquer um, com seres de menor importância do que nós
(porque têm menos títulos, menos riqueza, menos poder ou menos popularidade do
que nós). Para nos protegermos da livre interação passamos a conviver apenas
com aqueles que se parecem conosco e ficamos cada vez mais parecidos com eles,
por um mecanismo que já foi explicado pelo físico Mark Buchanan (2007) em O
átomo social [op. cit. infra]. Como resultado, ficamos cada vez mais
aprisionados em nosso submundo do mundo único: ainda que morando em uma
megalópole de dez milhões de habitantes, frequentamos os mesmos clubes, moramos
nos mesmos bairros, gozamos nossas férias nas mesmas localidades e fazemos os
mesmos roteiros de viagem, jogamos os mesmos jogos, usamos as mesmas roupas e
conversamos as mesmas conversas... Quando se coloca em processo de fluzz uma pessoa deixa de lutar para subir, para ter sucesso, para se igualar
ou imitar os ricos, os poderosos, os muito titulados e os famosos.
Libertando-se da exigência de ser uma VIP (very important
person), ela começa a revalorizar seus relacionamentos horizontais. Nessa
jornada terapêutica, vai se curando das sociopatias associadas às perturbações
no campo social introduzidas pela hierarquia e vai caminhando, no seu próprio
passo e do seu próprio jeito, em direção ao supremo objetivo de virar uma pessoa comum. Nota extraída de FRANCO, Augusto (2011). Fluzz: op. cit. Cf. também BUCHANAN, Mark (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.
(32) “There is no heresy or no philosophy which
is so abhorrent to the church as a human being”. Letter to Augusta Gregory
(22/11/1902) from James Joyce by Richard Ellmann (1959). Cf. ELLMANN, Richard (1959). James Joyce. Oxford University Press, 1983.
(33). O fracasso de todas as chamadas “pessoas de sucesso” é serem
pessoas privadas. Pessoas que se fecharam à interação com o outro-imprevisível
e, ao fazer isso, a despeito de serem muito conhecidas, obstruíram conexões com
a nuvem que as envolvem, desatalharam clusters(ao se recusarem a servir como pontes), excluíram outras pessoas do seu
espaço de vida e simultaneamente se excluíram de outros mundos, isolando-se do
superorganismo humano e deixando de contar com uma parte (justamente aquela
parte inusitada, que os marqueteiros, os políticos profissionais e os
psicólogos sociais tanto procuram e não conseguem encontrar) das imensas
potencialidades do social. São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam
abordar por qualquer um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones
são mantidos em sigilo. Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros,
agentes de segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados
a comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre para
usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda de si-mesmas (para ficarem mais
famosas e auferirem os benefícios econômicos, sociais e políticos conferidos
diferencialmente a quem alcançou tal condição). Isso acaba se manifestando no
que acreditam que seja sua vida pessoal, como indivíduos, supostamente
autônomos, tão importantes que não podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como consequência, começam a desenvolver aquela
sociopatia mais conhecida pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por
déficit de interatividade. Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O
sucesso é o melhor caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também
uma medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de
querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não importa
para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões de followers nas mídias sociais mais frequentadas ou se seu blog tem milhares ou
milhões depageviews). Quem não acha (novos) caminhos, não pode encontrar
um caminho para sair da Matrix. Nota
parcialmente extraída de FRANCO, Augusto (2011). Fluzz. Op. cit.
(34) Cypher was a redpill assigned to the Zion hovercraft Nebuchadnezzar
under the command of Morpheus. Cypher's job, as with all other operatives, was
to free human minds trapped within the Matrix. Cypher was dreadfully unhappy
with the nature of reality in comparison to the relative comforts found within
the illusory world of the Matrix. Cf. http://matrix.wikia.com/wiki/Cypher
Fonte: http://escoladeredes.net
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