DARYL
SHARP
Sozinho naquela noite, minha mente retornou
ao tempo que passei com Arnold em Zurique. Viver com ele ensinou-me quase tanto
sobre tipologia quanto ler Jung.
Arnold era um intuitivo delirante. Fui buscá-lo na
estação quando ele chegou. Eu já o esperava há três trens. Fiel ao seu tipo,
sua carta não era precisa. Fiel ao meu, eu era.
— Aluguei um chalé fora da
cidade — informei-o a respeito enquanto apanhava a sua mala. O fecho estava
quebrado e as correias já tinham desaparecido. Uma rodinha faltava. — São doze
minutos e meio de trem e ele nunca atrasa. O chalé tem venezianas verdes e
papel de parede de bolinhas. A proprietária é um amor, podemos mobiliar a casa
do jeito que quisermos.
— Perfeito! — disse Arnold,
segurando um jornal sobre a cabeça. Chovia. Ele não tinha chapéu e esquecera de
trazer a capa de chuva, E calçava chinelo, santo Deus! Não conseguimos achar
seu baú, pois ele o despachara para Lucerna.
— Lucerna, Zurique... tudo é
Suíça para mim — filosofou.
Foi bastante divertido no começo. Nessa época não
nos conhecíamos direito. Eu não sabia o que me esperava. Nunca estivera tão
próximo de alguém tão... bem, tão diferente.
O tempo nada significava
para Arnold. Ele perdia o trem, esquecia compromissos. Estava sempre atrasado
para as aulas e quando, finalmente, encontrava a sala certa, não tinha lápis
nem papel. Um dia tinha rios de dinheiro, no outro não tinha nada, pois não
controlava as despesas. Não distinguia o leste do oeste e se perdia sempre que
saía de casa. E às vezes dentro de casa.
— Você está precisando de um
cão-guia — gracejei.
— Não enquanto você estiver
por perto — retrucou sorrindo.
Ele esquecia o forno ligado à noite. Nunca apagava
as luzes. As panelas ferviam e derramavam e o assado virava carvão enquanto
ele, sentado na varanda, admirava o céu. A cozinha impregnou-se para sempre do
cheiro de torrada queimada. Ele perdia as chaves, a carteira, as anotações de
aulas, o passaporte. Nunca tinha uma camisa limpa. Com uma surrada jaqueta de
couro, jeans de fundo frouxo e meias desparelhadas, mais parecia um vagabundo.
Seu quarto vivia na maior
desordem, como se um furacão tivesse passado por ali.
— Eu fico louco só de olhar para você — cantarolava eu, ajeitando a
gravata
diante do espelho.
diante do espelho.
Eu gostava de me vestir com elegância; isso fazia
com que me sentisse bem. Sabia o lugar exato de cada coisa. Minha escrivaninha
era bem organizada e meu quarto sempre arrumado. Eu apagava as luzes quando
saía de casa e tinha um excelente senso de direção. Não perdia coisa alguma e
era sempre pontual. Sabia cozinhar e costurar. Sabia exatamente quanto dinheiro
tinha no bolso. Nada me escapava, eu me lembrava de todos os detalhes.
—
Você não vive na realidade — comentei, enquanto Arnold se
aventurava a fritar um ovo, Uma verdadeira epopéia. Primeiro não achava a
frigideira, depois colocou-a sobre um bico de gás apagado.
—
Não na realidade que você conhece — respondeu, um pouco magoado.
— Diabo! — praguejou. Tinha se queimado de novo.
Lutei para gostar do Arnold, Eu queria gostar
dele. Sua natureza expansiva e sua exuberância inatas eram encantadoras. Eu
admirava seu ar de descuidada confiança. Ele era a alma de qualquer festa. Adaptava-se
facilmente às novas situações. Era muito mais aventureiro do que eu. Em
qualquer lugar que ia, fazia amigos. E os trazia para dentro de casa.
Ele era dotado de uma misteriosa percepção. Sempre
que me via atolado na rotina, tinha alguma novidade a sugerir. Sua mente era
fértil; fervilhava de novos planos e idéias. Seus palpites em geral estavam
certos. Era como se ele tivesse um sexto sentido, enquanto eu me restringia aos
cinco costumeiros, Minha visão era mundana — onde eu via uma "coisa"
ou uma "pessoa", Arnold via a alma dela.
Mas constantemente surgiam problemas entre
nós. Quando ele manifestava a intenção de fazer alguma coisa, eu o tomava ao pé
da letra. Eu acreditava que ele queria dizer aquilo que tinha dito, que ele
queria fazer aquilo que anunciara. Isso era especialmente perturbador quando
ele deixava de aparecer na hora e lugar marcados. Acontecia com bastante
freqüência.
—
Olhe aqui — eu reclamava —, eu estava contando que você vinha. Até
comprei os ingressos. Onde é que você estava?
—
Tive que parar no caminho — respondia, na defensiva —, uma outra
coisa que apareceu e eu não consegui resistir.
—
Você é instável, não dá para confiar em você. Você é superficial.
Vive nas nuvens, E nem tem uma opinião formada!
Mas não era assim que
Arnold via as coisas.
— Eu só exploro as possibilidades — explicava quando eu pela décima
vez o
acusava de ser irresponsável ou de, pelo menos, me enganar, — Elas não são reais
até serem expressas e, quando eu as expresso, elas ganham forma. Mas isso não quer
dizer que preciso me prender a elas. Alguma outra coisa melhor pode me acontecer.
Eu não fico amarrado às coisas que digo, Não é minha culpa se você toma tudo tão
ao pé da letra.
acusava de ser irresponsável ou de, pelo menos, me enganar, — Elas não são reais
até serem expressas e, quando eu as expresso, elas ganham forma. Mas isso não quer
dizer que preciso me prender a elas. Alguma outra coisa melhor pode me acontecer.
Eu não fico amarrado às coisas que digo, Não é minha culpa se você toma tudo tão
ao pé da letra.
E prosseguia:
— As intuições são como passarinhos voando em
círculos na minha cabeça. Elas
vêm e vão. Talvez eu as acompanhe, talvez não; eu nunca sei, mas preciso de tempo
para verificar o vôo delas.
vêm e vão. Talvez eu as acompanhe, talvez não; eu nunca sei, mas preciso de tempo
para verificar o vôo delas.
Um dia, quando levantei, encontrei mais uma
panela vazia chiando em cima do bico de gás aceso. Arnold se arrastava para
fora da cama, procurando os óculos.
— Você viu o meu barbeador?
— perguntou.
— Vá para o inferno! —
gritei, furioso, agarrando um pegador de panela. — Qualquer dia desses você
ainda vai botar fogo na casa. Nós dois vamos virar cinza. E quando vierem recolher as cinzas numa urna para
mandar para os nossos parentes, vão dizer "Pobrezinhos! Dois rapazes com
tanto futuro! Pena que um deles fosse um paspalhão!"
Arnold entrou na cozinha
no instante em que eu jogava a panela queimada porta afora.
— Ah, é? — disse ele. — Foi você que fez um
jantar para a Cynthia ontem à
noite. Eu nem estava em casa.
noite. Eu nem estava em casa.
Era verdade. Fiquei rubro
de vergonha. Minha redoma se estilhaçou. A realidade que eu conhecia se
expandiu.
— Desculpe — murmurei,
humilde —, eu tinha esquecido.
Arnold bateu palmas e se
pôs a dançar pela cozinha.
— Bem-vindo à raça humana! —
cantava ele. E, como sempre, desafinado.
Só então percebi que Arnold era a minha sombra.
Foi uma revelação. Isso não deveria ter sido uma surpresa porque já havíamos definido
que nossos complexos eram radicalmente diferentes, mas foi. E me atingiu como
um raio. Eu disse isso ao Arnold.
— Não se incomode — respondeu. — Você também é a minha sombra. E por
isso que você me faz subir pelas paredes.
isso que você me faz subir pelas paredes.
Abraçamo-nos. Acho que esse incidente
salvou o nosso relacionamento.
Tudo isso aconteceu há muito tempo. Nesses anos
que se passaram, tornei-me mais parecido com o Arnold. E ele, mais parecido
comigo. Ele já distingue a esquerda da direita e até aprendeu a fazer crochê.
Sua atenção aos detalhes geralmente é mais aguçada que a minha. Ele mora
sozinho e tem um jardim maravilhoso. Conhece o nome de todas as flores, em
latim.
Enquanto isso, saio para jantar e às vezes
vagueio pelos bares até o nascer do dia. Extravio papéis valiosos. Esqueço
nomes e números de telefone. Perco-me numa cidade estranha. Exploro
possibilidades enquanto as coisas se empilham à minha volta. Se não tivesse uma
faxineira, eu logo seria soterrado pelo lixo.
Esses desenvolvimentos são as conseqüências
inesperadas do fato de você chegar a conhecer a sua sombra e incorporá-la à sua
vida. Uma vez que esse processo se põe em movimento, torna-se difícil detê-lo.
Você não pode voltar a ser aquilo que era, mas o que perde de um lado ganha do
outro. Você perde um pouco daquilo que foi, mas acrescenta uma dimensão que não
existia antes. Onde você pendia para um lado, agora você encontra o equilíbrio.
Aprende a apreciar aqueles que funcionam de modo diferente e desenvolve uma
nova atitude em relação a si mesmo.
Vejo Arnold de tempos em tempos. Ainda
somos "irmãos na sombra", mas agora as posições foram trocadas.
Conto-lhe minha aventura
mais recente. Ele sacode a cabeça.
— Você, hein?, 'seu' grande vadio! — brinca, socando o meu ombro.
Arnold descreve calmas noites ao pé da lareira, com uns poucos amigos íntimos,
e diz que nunca mais quer voltar a viajar. Justo ele! Quando eu o conheci, não
havia o que o fizesse ficar em casa.
— Você, hein?, 'seu' grande chato monótono! — brinco, socando o seu
ombro.
Fonte: AO ENCONTRO DA SOMBRA: O potencial oculto do lado escuro da natureza humana
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