"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Honrar o feminino e o masculino

Adriana Tanese Nogueira

Honrar é um conceito que remete a dois paradigmas completamente diferentes. Um é o tradicional, vinculado ao patriarcado e do qual a mafia representa seu ápice e quintessência. Por honra se mata. A honra é masculina e feminina, e consiste em cada um ocupar o lugar que lhe é reservado pelo sistema sem sair do trilho, nunca. Custe o que custar. Como esses lugares são culturalmente condicionados, eles também acabam por um dia se tornarem antiquados, atrasados, conservadores e repressores. A mulher e o homem de honra mantêm seus papeis firmes e fortes, defendendo-os de cabeça alta e convicção ferrea, como uma criança segura seu ursinho de pelúcia muito depois dele ter perdido todo o estofo e estar murcho e sujo.



A outra concepção do honrar é indígena (nativa-americana). Honrar é respeitar, fazer

reverência, saudar com reconhecimento e consideração algo de valor. É uma planta porque dá nutrimento, sombra e proteção. É uma mãe porque deu a vida, dá o alimento, o abrigo e o olhar. É o guerreiro porque defende, ampara, sustenta. É o animal porque oferece sua carne, seu leite, seu couro, seu pêlo e penas para a sobrevivência e o bem estar dos humanos.



Nesse horizonte é que devemos honrar o feminino e o masculino dentro e fora de nós. Feminino é o aconchego, o afeto, a comunicação sentimental, a intuição, a harmonia entre as partes, a compreensão (no sentido de com-preender, pegar para dentro), o corpo (e suas necessidades e limites) e a matéria (seu peso e todo o trabalho que dá). O feminino está nas atividades de casa, com os filhos, nas meditações, introversões, reflexões profundas. Encontra-se na passividade necessária para receber ajuda, amor, acolhimento, percepções sutis, sacação do que está além, misticismo.



Antigamente, essas características eram espalhadas entre mulheres diferentes, em momentos e situações de vida diferentes. Hoje, elas estão se tornando qualidades que ambos os gêneros precisam possuir, pois somos Taos em forma humana. E estamos evoluindo.



Masculino é a ação e a atividade, o fazer, o dizer, o expôr. É a comunicação lógica e clara. Julgamento e crítica são masculinos. A atividade do pensar é masculina, aquela do sentir é feminina. O masculino está na guerra, nas estratégias, nas articulações, na visão de conjunto e no planejamento. Masculino é o pensamento abstrato, como feminino é aquele concreto. A águia que voa alto no céu é masculina, a tartaruga símbolo da Terra, que carrega a casa em seu corpo é o feminino. O corpo é nossa casa, cuidar dele, carregá-lo consigo torna mais lento o caminho, porém mais seguro, até porque sem corpo de que vale ter projetos? A extroversão é masculina, e a superficialidade seu eventual corolário.



Honrar feminino e masculino significa respeitar e cuidar de ambos os mundos que estão dentro cada um de nós. O primeiro passo, numa cultura machista é resgatar o sentir. Pelo sentir nos conectamos às emoções (medo, raiva, insegurança, alegria), aos sentimentos (amor, ódio, dúvida) e ao corpo (cansado, triste, doente, saudável). Sentir é ouvir, prestar atenção, deixar-se penetrar pelo que não está contido naquele punhado de pensamentos que ruminarmos constantemente, e às vezes inutilmente, em nossa cabeça. Essa penetração simbólica dá medo porque, como aquela física, pode levar à concepção. O filho, como já o mito de Zeus conta, está destinado a destronar o Pai, isto é a tornar obsoleto e limitado o sistema de pensamento que o antecede (aquele punhado de idéias, crenças, hábitos que ruminamos diariamente). Pela concepção interior um novo Eu nasce. Entretanto, no lugar da estrela cometa e dos Reis Magos, ao invés de honrar o Novo há, infelizmente, medo, fuga e corre-corre, como baratas quando se acende a luz.



Sentir é uma característica do feminino que muitas mulheres devem recuperar, para não falar da grande maioria dos homens. E, porque o sentir é feminino, é pelo feminino que a mudança de paradigma humano há de acontecer. A valorização desse aspecto do feminino - o sentir - é, nesse momento histórico, o primeiro passo rumo à revolução individual e coletiva. Desse sentir nasce o novo masculino, crítico e reflexivo, que completa a transição.



Nas relações concretas entre homens e mulheres, honrar o feminino e masculino leva a dois indivíduos inteiros com perspectivas sobre a vida que coexistem sem aquela tendência desagradável que todos conhecem de que um tem de abdicar de si mesmo e do que pensa para estar com o outro. Graças à união que não mistura mas mantém as diferenças, o novo casal é muito mais poderoso do que anterior, pois ele representa em seu microcosmo o macrocosmo humano.



Enquanto o casal tradicional, feito de duas metades, alcançava no máximo uma das metades do Tao, a qual era, geralmente, a versão machista de papeis de gênero, o casal novo engloba em si - conscientemente - o conjunto humano, o todo. E porque estão conscientes, são livres de ser. Ele respeita o mundo dela, ela respeita o mundo dele. Dois mundos que poderiam ser simplesmente incompreensíveis se não fosse pelo fato de que cada indivíduo está consciente de si, se assume como indivíduo e ama.



Amar não é mais então aderir, como um adesivo, à mentalidade do companheiro e aos sentimentos da companheira. Não é mais uma troca de "favores". Amar não é também projeção recíproca das necessidades e carências básicas. O novo casal libertou o amor desses grilhões, e ama em liberade. Nasce o amor pelo outro por aquilo que ele é, enquanto se agradece silenciosamente no próprio peito o fato dele existir.



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