"Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera... Quando entrar setembro..." (Beto Guedes)

sábado, 29 de janeiro de 2011

Consciência versus o "How To"

Tornou-se parte da cultura mundial, a valorização e a busca do "how to", do como fazer as coisas. São as chamadas "receitas". Para tudo tem uma receita: desde como encontrar um namorado e manter uma relação estável e duradoura até como fritar um ovo sem deixar espirrar o óleo. Os americanos inventaram isso, como é sabido. Eles são o povo da praticidade por excelência. Enquanto os latinos passam horas discutindo idéias, os americanos as transformam rapidamente numa "receita", fácil e digerível, e a vendem ao público faminto por soluções rápidas. Esta característica cultural é parte do sucesso americano na história passada, permitindo-lhes avançar e superar os outros povos em poder e dinheiro. Mas hoje, eles também estão em crise, não só econômica como, sobretudo, cultural e social.





Muitos desprezam receitas, outros não seguem nenhuma. Acredito em discriminação

consciente, o que me leva a apreciar receitas em determinadas situações, a modificar receitas em outras, e a descartar receitas numa terceira situação. Meu compromisso é com meus objetivos e necessidades, logo eu uso o que me convém para obter o que preciso. Utilitarismo este que é possível porque há consciência da parte minha (unida, naturalmente, à auto-estima indispensável para inventar caminhos personalizados).





Os requisitos para seguir receitas são: obediência às orientações dadas, precisão e respeito pela sequência oferecida, disciplina para seguir o trilho indicado. Os efeitos colaterais da receita é que ela põe a consciência discriminadora, a presença atenta, de repouso. Seguir uma receita pode fazer conseguir um resultado no imediato, mas desqualifica indiretamente o poder criativo e a auto-estima da pessoa que segue a receita.





Dar receitas virou uma febre social, levando as pessoas a desconsiderarem que sua vida e sua psicologia, seus valores e seus amores são mais profundos do que uma pincelada de dicas e orientações genéricas. Não existe uma pílula da felicidade, nem um remédio que eficazmente não nos faça sentir a dor da alma. É tudo mentira, tudo um fingimento conveniente.





É conveniente para quem vende livros de receitas psicológicas e é conveniente para quem os compram: uns ganham dinheiro e fama, os outros ganham tempo para manter a ilusão de que estão se tratando sem de fato fazer nada para "pôr a mão na massa" de sua matéria psíquica. Como baratas tontas, essas pessoas fogem da visão de seus problemas e/ou fuçam entre mil e uma dicas na internet, textos e atividades para "resolver-se". A única coisa que não fazem é parar e encarar o "bicho interno". Se um médico tentasse curar um paciente com doença desconhecida chutando diagnoses e tentando remédios sem fazer uma análise séria e detalhada do que ocorre no corpo do paciente e sem levantar o histórico pessoal e familiar do mesmo, ele deveria com toda razão ser denunciado e excluído do conselho de medicina.





É exatamente o que acontece com os "problemas psicológicos". Tão pouca consideração é dada à alma e sua realidade, tão materialista é nosso sistema socio-cultural, que não se percebe o absurdo do que se faz. Assim como uma doença física quando pega no início é, geralmente, facilmente curável, do mesmo modo, os "distúrbios psicológicos" deixados mofar por anos e anos se tornam bolas de neve que requerem tempo (isto é, anos) para serem resolvidos. Sem falar das questões psicológicas que passam de pais para filhos, levando a comportamentos "esquisitos" nos últimos. Estes casos deveriam ser enfrentados logos para liberar a vida da criança das cargas e problemáticas que seus pais não conseguiram encarar.





Mas no âmbito psicológico as receitas não funcionam - ou não funcionam de verdade, no longo prazo e de forma profunda. É como tomar uma aspirina quando se tem dor de barriga. Pode até passar no momento, mas amanhã volta. Se as receitas funcionam em muitos casos no mundo material, a pisque requer outra abordagem. Ela requer desenvolvimento de consciência.





Esta palavra, que parece mística, mítica ou enigmática a muitos, é ainda pouco compreendida. Consciência é acender a luz num quarto escuro. Mas não só! É observar e analizar com atenção tudo o que há no quarto agora iluminado. E não acabou aqui! Consciência é, em seguida, observar com quais olhos se vêem as coisas que se vêem, ou seja, descobrir talvez que se está usando um par de óculos velhos, ou defocados. E talvez questionar a origem desses óculos, quem deu, como e por que. Aí, consciência é observar novamente com atenção o que está no quarto, e talvez descobrir que há mais do que se havia visto no começo. Então, começar a entender cada parte desse espaço interno, e como atua em nossa vida. É dar nomes, rebatizar, reconsiderar, aprofundar, integrar, consagrar, jogar fora ou acolher.





O processo de enxergar sem lentes distorcidas ou, vice-versa, com lentes corretas, uma realidade produz o efeito milagroso de ir agindo sobre a mesma e transformando-a. No momento em que se enxergam as coisas por outro ângulo, vai-se como que instintivamente reconfigurando a realidade e aos poucos tomando novas atitudes. Cada uma delas é um passo e cada uma será precedida por nova consciência e análise.





No mundo psicológico a consciência toma o lugar da receita. Naturalmente, consciência implica coragem, honestidade e uma série de outras qualidades humanas valiosas. Quem adentra este caminho não está resolvido, mas está em melhores condições psicológicas dos que não ousam dar o primeiro passo na direção de seu processo de conscientização. Os que apostam em auto-conhecimento estão, pelos menos, aprendendo a manejar a espada discriminatória da consciência, enquanto que os outros estão ainda brincando com suas fantasias coloridas, e apostando na sorte de acertar a loteria da felicidade.
 

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